sexta-feira, 24 de maio de 2019

João Batista, meu irmão


JOÃO BATISTA DE MENDONÇA (04.09.1928 / 03.04.1957 ) – Em Itacoatiara,  AMAZONAS, ao terminar o curso primário, em geral aos 12 anos de idade ,  poucas crianças conseguiam continuar os estudos na capital.  Graças ao apoio do Gerson, irmão que morava em Manaus, o João concorreu e foi aprovado no difícil exame de admissão para o excelente colégio público, o Ginásio Amazonense.  Lembro, em criança, que nas férias do meio e fim de ano, ele chegava da capital com muitas novidades, dentre tantas, o jogo de botão.  O time dele era o Flamengo, os botões feitos de   jarina, semente de palmeira amazônica que,  por ser branca e muito resistente, chegaram a chamar de mármore vegetal.  O resto da garotada formava seus times com  botões de roupa,  de madeira ou de caroço de tucumã.  Ele e o Jorge (*), que defendia o Fluminense, levavam a sério os  campeonatos, com tabelas, campos demarcados no chão das salas, juízes e até locutores.  A mim deram o São Cristóvão, depois, por uma desistência, o João me fez Vascaíno, time pelo qual torço até hoje. Para terem ideia de como o João era espirituoso, alegre e gozador, certa vez o Wilson, um dos irmãos que o ajudavam nos estudos, comentou sorrindo – João, tuas cartas não me trazem notícias, só pedem dinheiro.   Na carta seguinte, ele fez duas páginas só de  notícias, não pediu dinheiro, mas todas as letras “S” foram trocadas um “$”!.  Começou emancipar-se trabalhando no IBGE quando também escrevia, com inteligência e humor, uma coluna intitulada Zé Ouvinte,   muito lida no jornal A GAZETA.   Sempre gostou de futebol. Certo dia, assistíamos a um jogo dele num pequeno campo nos arredores de Manaus. Em certo momento, o Pedro, nosso irmão, entrou em campo disposto dar uma surra no adversário que dera uma forte entrada derrubando perigosamente  o João que,  levantando rapidamente,  segurou o Pedro dizendo “calma mano,  não houve maldade, é do jogo” . João mudou para Belo Horizonte em  1950, para tratar de tuberculose que atingiu muitos de meus irmãos.  Em setembro de 1956, na minha primeira viagem ao Rio, fui visita-los, viajando de trem Vera Cruz e ele foi me receber na estação. Logo lhe pedi que me indicasse um hotel. Com largo e peculiar sorriso
 me respondeu - “ teu hotel é lá em casa e tu  vais dormir no chão!”. Dessa estada, restam-me lembranças de momentos maravilhosos.   Maria Thereza, gestante de muitos meses, mostrava-se tranquila apesar de ter a casa cheia, pois hospedavam também o Gerson e família. João, fã da rainha do rádio daquele ano, me levou a comprar um compacto de Clara Nunes, que despontava cantando Arriverdeci Roma.  Depois, com Gerson e família,  fomos de avião a Campanha do Sul, onde morava a mana Tereza e seu esposo Hélio Mallet. Lá encontramos, também em visita,  a mana Ermelinda e o cunhado Gerardo.   O casal anfitrião ficou em casa descansando.  Agora, vejam a bela história (**)  a seguir:   Como estudante de enfermagem na Faculdade Hermantina Beralda, de Juiz de Fora, Maria Thereza dera inúmeros plantões na Santa Casa de Misericórdia da mesma cidade.   Após formatura, foi designada para trabalhar em Juazeiro, na Bahia, onde foi surpreendida com uma  doença pulmonar, certamente adquirida nas  frias noites de seus plantões.  Para tratamento de saúde fora deslocada para a sede do SESP,  no Rio de Janeiro e, daí, com rápida recuperação, foi encaminhada a Belo Horizonte para, após repouso em quarentena, retornar ao serviço.  Para complementar uma documentação, precisou ir ao Laboratório do IPASE de BH.   Justo nessa mesma manhã de março de 1953, no mesmo horário em que aguardava atendimento, um jovem estranho, de boa aparência, atencioso, simpático e alegre começou a conversar com ela dizendo que estava alí pela primeira vez  para realizar um exame.   O mundo conspira!    Mineira discreta e cautelosa - dizem que mineiro é desconfiado – em princípio ela o achou muito apresentado mas, aos poucos o João lhe foi ganhando a confiança para novos  encontros que resultaram em namoro e, em  exatos 18 meses,  no dia 29 de setembro de 1954, ela passou a chamar-se Maria Thereza Gomes de Mendonça, em casamento realizado na cidade de Resende Costa, terra natal da noiva,  residência de sua  tradicional e numerosa família. Bastante incentivado pelo Sr. Prudêncio Gomes, pai de Maria Thereza,  o  João decidiu continuar os estudos, interrompido em Manaus,  reiniciando  na  3ª. Série de Direito.  Nessa época de estudante, ocorreu um fato interessante.  Numa de suas viagens a Rezende Costa, foi convidado a participar improvisadamente como advogado de defesa num evento tradicional na cidade, tipo um teatro, em que todo ano era simulado o julgamento de um réu. Ao final, foram bastante aplaudidos pelo público presente.  Além dos aplausos, João recebeu muitos elogios pelo seu desempenho, tendo sido realçado como brilhante pelo advogado de acusação, que, naquele ano, em vez de um leigo, atuara o competente e respeitado Promotor de Justiça da cidade.  Para concluir os estudos, suas notas finais do 5º ano, lhe garantiam estar entre os Bacharelandos em Direito, porém, sua ausência na formatura,  mereceu emocionantes homenagens que as cartas convites dirigidas a Maria Thereza, resumidas a seguir,  falam por si só:

 Da Faculdade de Direito de Minas Gerais - 20.11.57 – Constando da programação oficial da formatura dos bacharelandos, fazemos-lhe um convite para solenidade em homenagem que prestamos ao saudoso colega, não é mera formalidade, como poderia parecer, pois que num convívio de pouco tempo soube conquistar a nossa eterna amizade e a admiração de todos os professores (a) Marcio Bruno Von Sherling e Adolfo Pereira Filho.

   Da Diretoria Acadêmica da mesma Faculdade - Convite para,   em 9.12.1957,  Maria Tereza comparecer à homenagem  para descerrar,  na Sala dos Parlamentos dos Alunos desta Faculdade, a placa “Sala João Batista de Mendonça” na presença de formandos, professores e demais colegas (a) Roberto P. de Cerqueira, Secretário Geral e Olímpio Porto Botelho, Presidente.

 Se considerarmos somente a contagem de tempo aqui da terra, o João se fez presente por apenas 4 meses e 11 dias  na vida de  uma linda criança, fruto de muito amor do casal, o Joãozinho, nascido em 20.11.1956, hoje um belo jovem senhor que serve de  orgulho para sua mãe, pelos valores de  caráter, bondade  e inteligência,  com forte lembrança de  traços físicos e espirituais de seu pai.  

           
(*) Jorge Bonifácio de Lima, em 2019 faz 94 anos, está bem, mora em Manaus, é meu irmão por ser filho de Floro Rebelo de Mendonça, meu pai adotivo.
(**) Agradeço a colaboração da cunhada  Maria Thereza,  e do João Batista Filho,  que muito me ajudaram com informações  que me permitiram prosseguir e  enriquecer este texto .

sexta-feira, 3 de maio de 2019

A CASA DE MEU PAI


  


 A partir dos meus 6 a7 anos de idade, comecei a visitar a casa dos meus irmãos, até então chamados de  “primos”.  Era bem grande como se vê na  foto ao lado, tendo à frente o querido mano Jurandir.  Essa casa tinha mais umas duas janelas à esquerda da foto.  Lembro que tinha duas salas contíguas à frente, uma  de jantar e outra de lazer, uma alcova, um salão, espaçosa cozinha e mais uns dois quartos em um sótão, um deles das manas Ermelinda e Tereza.    Eu gostava de frequentar esse grande salão,  dormitório de alguns dos meus irmãos,  onde   eram guardados muitos instrumentos musicais que eu tentava, sem sucesso,  tocar um ou outro.  Do Gerson (violão),  Jurandir (trombone), Edson (piston), Otoniel (clarinete), Antonio, o Quitó (trompa), Pedro (contra-baixo ou tuba),   João Batista  (flautin).   Meus  7 irmãos e mais uns 3 ou 4 outros músicos,  sob a batuta do maestro Fona, pai de um excelente pintor e exímio violinista, o Ubirajara, formavam a orquestra  que se apresentava nas festas cívicas da cidade.  Muitos chamavam de a orquestra dos Mendonças.    Essa casa ficava  a  quatro quarteirões de onde eu morava, era a última da rua Desembargador Meninéia, em Itacoatiara.  Ela se limitava por um lado com  a rua que circundava a grande lagoa do Jauary (hoje inexistente) que,    com o tempo,  teve o centro dela   tomado pelos aningáis e outras pequenas vegetações aquáticas, viveiros de alguns jacarés, cobras, sangue-sugas, peixes pequenos,  inclusive o famoso poraquê,  e muitos pássaros que se divertiam em revoadas, faziam seus ninhos e compunham  belas canções  para deleite dos que amam a  natureza.   As Lavadeiras buscavam as límpidas águas das cacimbas que se formavam naturalmente em vários pontos.  A criançada, com minha presença assídua, jogava bola em campinhos em declive à beira do igarapé.  Nas enchentes do Rio, havia procissões, com música,  muitos fogos e  canoas enfeitadas  que percorriam todo o igarapé que se formava ao redor da vegetação, sendo mais um motivo de alegria para os moradores e visitantes que iam assistir aos festejos de  São Pedro.  Com a enchente do rio,  o quintal de meu pai se tornava um lago escondendo a cerca. Por atingir as sentinas, na época construídas nos quintais,   impurezas eram liberadas,  tornando essas águas  impróprias para o banho, menos para minhas irmãs Tereza,  Ermelinda e eu, sempre convidado a burlarmos a vigilância dos mais velhos.  Talvez contássemos com imunidade ou a proteção divina, ou  certamente as duas.   Hoje essa casa é inexistente mas deixou,  na nossa memória, lembranças inesquecíveis.

PEDROCA, meu pai



                                                                              
PEDRO LUDGERO DE MENDONÇA LIMA (1888?- 31/12/1946), filho de João Baptista de Mendonça e Tereza Correia de Mendonça, nasceu em Maranguape. Fugindo da seca que  assolava o Ceará, foi para o  Amazonas em 17/2/1894, com 8 anos de idade, em companhia de seu irmão mais velho, Vicente Geraldo de Mendonça Lima,  que, embora jovem de apenas 16 anos, agia como uma espécie de tutor de meu pai e de seus irmãos Zeca,   que morreu cedo,   Ana (tia Naninha) e tia Sinhá. Para poderem viajar,  contaram com o apoio do padre Pedro Abreu Pereira. Depois de Itacoatiara- AM,  residiram em São José do Amatari (1901/1902), Vila de Silves, Boca dos Autazes, retornando finalmente para a Velha Serpa (*).   Não sei onde ocorreu o seu casamento com minha mãe Maria Vital de Lima, mas sei, com certeza, que já moravam  em Itacoatiara, quando do meu nascimento,  em 23/06/1934.   De seu primeiro matrimônio, tiveram  11 filhos, Gerson, Wilson, Jurandir,  Otoniel, Pedro, Edson, Antonio (Quitó), João Batista, Tereza , Ermelinda e eu. Do segundo,  com Da. Eloya Fonseca de Mendonça,  mais 5 filhos, Renato, Adilson, Joaquina, Raimundo e Fátima.     Contaram-me que meu pai trabalhou na firma de Abdon Raman, na época grande comerciante ribeirinho, estabelecido entre as cidades de  Itacoatiara e Manaus e   que até aprendeu a  falar e a escrever razoavelmente o  turco.  Trabalhou em seguida na Prefeitura, porém, apesar de sua reconhecida competência, o seu perfil de pessoa austera, reservada, honesta e séria não agradou à politicagem de   Manuel Severiano Nunes, que o demitiu durante o curto período em que foi nomeado Prefeito de Itacoatiara.  Desempregado, necessitando de recursos para manter seus 10 filhos, não esmoreceu e pegou imediatamente um trabalho duro, o de carregar nas costas tábuas de madeira, na Serraria do industrial Antonio de Araújo Costa.    Nunca se queixou da dor dos calos que brotavam em suas mãos.   Passados alguns dias, o Sr. Raimundo Perales, gerente da empresa,  pai da minha atual e querida esposa Lucia Perales Rabello, ao fazer vistoria de rotina na Serraria, percebeu a fragilidade física daquele operário para o trabalho que executava.  Resolveu entrevista-lo e o promoveu a apontador, encarregado de registrar o   estoque e a movimentação das madeiras.  Não tardou nova avaliação.  Percebido seu maior potencial, foi   transferido para  o escritório da firma, onde,  em pouco tempo,  galgou o posto de guarda-livros (hoje Contador), cargo que exerceu até  afastar-se e vir a falecer de tuberculose, doença que, muito antes da descoberta da penicilina e de outros medicamentos, era  praticamente fatal.   Pouco me relacionei com meu  pai.  Chamava-o de tio, parentesco correto se seu sobrinho, Floro Rebelo de Mendonça, fosse realmente meu pai.    Tudo isso ocorreu  porque era mantido em segredo que eu fosse adotado.    Muitas vezes o vi passar em frente à casa em que eu morava, trajeto que fazia diariamente  para o trabalho  pois morava ao final da mesma rua.    Em criança,  visitava muito meus “primos” mas raramente o encontrava por coincidir com seu horário de trabalho.     Certo dia, aos 12 anos de idade,  jogava bola em frente à minha casa e, ao avistá-lo, corri para pedir-lhe, como de hábito a  “benção titio”, benção que nunca negara “ao sobrinho” mas, pela primeira vez,  o vi transtornado, gritando : “Me respeite, você já tem idade de saber que sou seu pai e não seu tio !   Saí correndo desesperadamente, entrei em casa aos prantos, mas minha mãe  Nunila Barros de Mendonça, docemente me convenceu  que havia um engano e que ela e Floro Rebelo de Mendonça é que  eram os meus verdadeiros pais, que muito me amavam, e que  iriam conversar com “meu tio” para que esse fato não se repetisse.    Em outro momento espero lhes contar o trauma que sofri, quando me foi confirmada a adoção.    Restou-me pouco tempo  para  curtir o meu pai que, segundo a minha irmã Fátima,  teria pronunciado,  lucidamente, naquele 31 de dezembro,  suas últimas palavras: “o ano está findando e eu estou indo com ele”...


 (*) Fontes: Livro de Biografia de Vicente Geraldo de Mendonça Lima, de autoria de meu saudoso primo Antonildes Bezerra de Mendonça, e em conversa com seu irmão, o  meu querido primo João Rebelo de Mendonça.