sábado, 10 de setembro de 2022

JURANDIR VITAL DE MENDONÇA, meu irmão - (11.09.1917 / 08.06.1995 )

Jurandir era o terceiro filho entre onze irmãos de nossa família. Muito inteligente, era calmo mas rápido nas ações. Como um dos mais velhos, participava ativamente da educação dos irmãos mais novos, como era costume na época, agindo de maneira firme e com poucas palavras, a exemplo de nosso pai. Em torno de seus vinte anos, tocava trombone na orquestra dos Mendonças, assim chamada em Itacoatiara pela superioridade numérica de meus irmãos. Entre os componentes da orquestra Jurandir foi o escolhido para ouvir as músicas tocadas nas rádios do Rio de Janeiro, por ser um   bom instrumentista, com o dom de ouvido sensível, entre o relativo e o absoluto, próximo do privilegiado. Muitas noites de sono foram perdidas, ao superar a precariedade das emissoras e dos rádios da época, com ondas sonoras oscilantes e ruidosas a exigirem dele grande esforço para escrever as pautas das músicas que ainda reproduzia para os demais instrumentos.                                                                 ]                                                                                              

Eu tinha seis anos de idade quando o Jurandir casou, em 16.07.1940, com a Ilza Ehm Barros, descendente de alemão por parte de sua mãe. A cerimônia, civil e religiosa, bem como a recepção, se deu na casa da rua Desembargador Mininéia, onde eu morava com meus pais adotivos, Floro (nosso primo) e Nunila Barros, esta descendente de espanhol casado com uma índia.  Nossa casa foi escolhida por eles, por ser um prédio de construção aprimorada e muito bem decorada internamente,  com ampla sala  assoalhada com tábua corrida de acapu e pau amarelo, cujas paredes exibiam várias quadros a óleo, com temas  da flora e fauna amazônicas, feitas pelo Ubirajara Fona que, além de bom pintor, anos mais tarde era reconhecido e homenageado, no Teatro Amazonas,  como um dos melhores violinistas do Amazonas..

                                                                        



  
 

quinta-feira, 31 de março de 2022

OTONIEL VITAL DE MENDONÇA (28.04.1920) 18.08.1974)

  

 foto: Fernando, Antonio José m(Toinho), Potyra (Florzinha), Otoniel, Mário Jorge e Carlos (Carlito)          

Por volta de seus 20 anos de idade, foi mais um irmão a participar da orquestra dos Mendonças.    Curiosidade de criança, eu observava que o velho Bagre ficava irritado pela sua posição na orquestra, entre Otoniel, com seu clarinete de som mais alto que o seu e, do outro lado, o mano João Batista, ainda menino, firulando com fortes agudos do seu flautin.                                                                                                      Seu primeiro emprego foi na Secretaria da Prefeitura de Itacoatiara, porém, como não tinha perfil para serviço burocrático, foi trabalhar na pequena loja de ferragens do sr. Aquilino Barros, o seu Arico, situada na parte externa do prédio do mercado municipal. Diga-se de passagem, era um lindo prédio de estrutura metálica com semelhança ao de Manaus, projetado pelo mesmo arquiteto da torre Eifel. Infelizmente, como diria Adoniran Barbosa: um dia chegou os homem com as ferramenta e o prefeito mandou derrubá, construindo, no mesmo local, um prédio bastante inferior arquitetonicamente.

 Bem antes dessa demolição, o sr. Arico decidiu mudar de ramo e de local, montando uma boa mercearia em um dos salões de sua residência no bairro do Jauary, de frente para uma rua beirando o caudaloso Rio Amazonas, o que lhe permitiu ampliar os negócios com proprietários de embarcações que ancoravam em frente à mercearia.   Com a idade avançada e a saúde comprometida, Sr. Arico foi se afastando dos negócios, assumidos pelo seu genro e sócio, o Otoniel, que iniciou uma dinâmica arrojada, financiando pescadores que lhe davam preferência nos peixes para o seu consumo, mantidos vivos em um grande tanque em seu quintal, e passou a realizar viagens periódicas pelo interior do Amazonas, em lancha própria, facilitando a vida dos comerciantes que antes se deslocavam até Itacoatiara..        

Com sua acurada visão comercial, além dos municípios próximos a Itacoatiara, estendeu suas viagens, numa espécie de apêndice, pelos rios do município de Maués, onde suas terras férteis produzem, por plantações ou pela vegetação nativa, o melhor fruto guaraná no País (foto ao lado), os quais 

ele comprava para vende-los aos beneficiadores e exportadores da própria cidade de Maués. Em suas ausências, a mercearia ficava a cargo do Sílvio, empregado de confiança, e de seus dois filhos mais velhos, os saudosos Carlos (Carlito) e Fernando que, embora jovenzinhos, demonstravam experiência e tino comercial.  Assim, o Otoniel se tornou um comerciante bem sucedido.

Sempre evitou assunto político, até ser procurado por um grande amigo que, enfrentando muitas recusas, implorou, por último, que ele se inscrevesse junto com ele ao menos para melhorar o coeficiente eleitoral de seu partido. Cedeu ao apelo, advertindo que não faria qualquer campanha, porém, foi surpreendido ao ser eleito o segundo vereador mais votado, suplantando seu próprio amigo! Teve o mandato cassado por se recusar, como avisara antes, a comparecer às reuniões da Câmara de Vereadores.  Casou-se em 04/05/1942, com   Potyra Rates Barros (22 anos) conhecida por Florzinha, filha do Sr Arico, um dos oito herdeiros de Aquilino Barros, espanhol que deixara riquíssima herança, a respeito de quem terei oportunidade de falar em outra ocasião.                                                                                                                                   

 Florzinha era muito alegre, desde que não lhe pisassem os calos, enquanto o Otoniel era calmo e sereno, mas essa diferença em nada lhes comprometeu a ótima relação matrimonial.  Florzinha, neta de índia, puxara a raça espanhola, e ele era o único irmão que herdara a origem negra ou de índio, de algum ancestral das famílias Vital ou Mendonça. Ambos eram muito bonitos e ela tinha ciúmes de seu olhar que dizia ser “um olhar velhaco”, e que ela estava de olho nas cornas que o assediavam na taberna.  Ele apenas sorria ao dizer que nada acontecia e que ele as tratava bem, da mesma forma que os outros fregueses. 

 Ao adoecer de uma das vistas,  recorreu ao  Dr. Wilton Rocha, na época um dos melhores oftalmologista de Belo Horizonte, que, pela gravidade, teve que  colocar uma  prótese,  tão bem feita  que não se percebia diferença entre seus olhos, a ponto de ter ocorrido um  episódio surpreendente em Petrópolis: Vera Lucia, nos seus seis anos de idade,  à frente do espelho do banheiro,  enfiava o dedo em vários pontos do seu olho quando foi repreendida pelo Gerson, ao perguntar: o que você está fazendo, menina? ela respondeu calmamente: pai,  estou tentando tirar meu olho para lavar como eu vi o tio Otoniel fazer!

Tive oportunidade de uma boa convivência com eles em várias oportunidades. Passei uns meses em sua casa em Itacoatiara, viajei certa vez em sua lancha até Maués, fizemos juntos a nossa primeira viagem ao Rio de Janeiro, seguindo até Belo Horizonte, hospedando-nos na casa do João Batista e Maria Tereza, onde já estavam   Gerson e família.  Fui com eles, na companhia de João Batista, Gerson e família até Lavras-MG, viajando em avião DC3 da Real Cia. Aérea, seguindo de táxi até Campanha do Sul, onde residia a Tereza com seu esposo Hélio e filhos, e, em visita, lá estavam a mana Ermelinda e seu esposo Gerardo. Foi uma viagem inesquecível.

 Registro, a seguir, algumas passagens pitorescas que guardo na memória:

 Numa festa do interior o Otoniel dançou com todas as moças, menos com uma cabocla esquecida num canto. Quase ao final da festa, na tentativa de reanima-la, convidou-a para dançar.  Recebeu, porém, uma indignada recusa:- não vou dançar com o Senhor por que o Senhor é muito esculhão de dama!

Certa manhã, ao levantar-se, Florzinha lhe deu a maior bronca dizendo:- tu não negas que és safado e sem vergonha, tu não prestas mesmo, sonhei que estavas aos beijos com uma caboclinha.  Sorrindo ele respondeu:- eras! tu sonhas e vens brigar comigo? o sonho é teu e eu não tenho nada a ver com essa história!

 Ao visitarmos o Gerson, em Petrópolis, o quarto em que o casal foi dormir tinha sido recentemente dedetizado.  Alérgico, o Otoniel não parava de tossir. Indicada a procurar um xarope na prateleira de remédios, a Florzinha, já sonolenta, pegou um vidro errado e o fez engolir uma grande colherada de óleo de babaçu, produto de alto teor de gordura saturada, usado para a pele, cabelo e em fabricação de sabão. Foi terrível aquela madrugada para o meu irmão que, impedido de tossir, corria constantemente para o banheiro.

  Em mais uma experiência comercial, Otoniel comprou um botequim, situado num belo conjunto de prédios ladeando a principal praça de Itacoatiara. Em algumas noites, numa sala isolada, uns senhores jogavam pocker. Os filhos dele atuavam como garçons, contentes pelas gordas fichas que recebiam como agrado dos jogadores.  Mas a Florzinha, que reclamava constantemente do horário tardio que as crianças chegavam em casa, certa noite saiu a caminhar sozinha por uns seis quarteirões até o botequim, onde não se conteve com a cena que viu e, enfurecida, soltou o berro: Isto é uma estupidez, Otoniel!  você deixar essas crianças, coitadas, dormindo mal nessas mesas e cadeiras, até estas horas da noite !  E, sem se interessar a quem se dirigia, continuou no mesmo tom: e vocês, parece um bando de desocupado, não têm vergonha de deixar suas mulheres sozinhas? Vão embora para suas casas!  elas estão sofrendo a falta de vocês, enquanto isso vocês ficam aqui grudados até de madrugada nessa jogatina!   O jogo acabou  e, silenciosamente,  foram se retirando um a um:  o Prefeito, o Delegado, o Coletor Federal e outras personalidades importantes na cidade.

Os filhos mais velhos,  Carlito e Fernando, de saudosa lembrança, estudaram no Seminário São José em Manaus, onde não se adaptaram pelo rigor da disciplina e por faltar-lhes vocação para o sacerdócio.  Em seguida, foram estudar em Belo Horizonte, seguidos pelos outros dois irmãos Mário Jorge e Toinho, onde residiram por um tempo na casa da mana Tereza e seu esposo Hélio Mallet, mais sua filharada.   

Nessa época, o Carlito enamorou-se de sua futura esposa, a Leila, que o incentivou a seguir o exemplo do pai dela, Sr. Oliveira, que obtivera um bom lucro, numa única venda que realizou, de uma louça antiga, um jarro com uma bacia.  Carlito e Leila começaram a trabalhar no ramo de antiguidades, onde, depois de casados, foram bem sucedidos, especializando-se, o Carlito como excelente avaliador tanto da qualidade como do valor histórico das peças, enquanto a esposa atuava mais na parte comercial. 

 O Fernando, trabalhando para a Pireli, saiu da empresa e passou a ser comerciante com lojas de Ferragens, em sociedade com Mário Jorge e o Antonio José, este voltado mais para a área financeira, com seus conhecimentos acadêmicos em Administração. Os irmãos ainda atuaram como sócios em construção de prédios de apartamentos, um dos quais, na av Francisco de Sá, 165, Prado, BH, foi registrado com o nome de Otoniel Vital de Mendonça.  Em passado não muito distante, cheguei a ver a placa com seu nome na fachada do citado prédio, (vide foto)

Mário Jorge foi desportista, jogou pelo Atlético Mineiro e Cruzeiro, revelando-se um excelente ponta esquerda e o Fernando, um ótimo zagueiro.  Muito jovens, firmaram contratos desfavoráveis, motivando desistirem do futebol.    

Ao aposentar-se, Otoniel mudou para Belo Horizonte em março de 1972.   Como os negócios que deixara em Itacoatiara começaram a declinar, Fernando e Toinho retornaram ao Amazonas para reergue-los até realizarem a venda.   Em BH o casal levava uma vida agradável, em mútua colaboração nas atividades do lar.  Otoniel se divertia muito quando surgiam parceiros para jogar buraco ou dominó, jogos nos quais era tão expert,  que raramente perdia.   Fizeram boas amizades e passaram a visitar com mais frequência os familiares, embora sempre preferissem ser receptivos.

No ano de 1974, houve uma epidemia de meningite meningocócita no Sudeste, alastrou-se com maior gravidade em Belo Horizonte, ceivando tantas vidas que os cemitérios eram obrigados a abrir valas.  Quando internados no único hospital que recebia pacientes com esse diagnóstico, raramente havia sobrevivente.  As visitas eram proibidas, mas, contrariando os temerosos apelos da família, Otoniel não abriu mão de ir ao cemitério para prestar sua última homenagem a um grande amigo mineiro. Lamentavelmente adquiriu a doença e, em 48 horas, nos deixou para sempre. 

Nota: Ao Mário Jorge, ao Antonio Jose e Leila,  e ao saudoso Fernando, agradeço suas valiosas colaborações  para melhoria deste texto.