O Quitó, nos seus 15 a 16 anos, tocava trompa, sob a regência do professor paraense, Raimundo Ubirajara FONA, único maestro na cidade. A “Orquestra dos Mendonças”, como o povo chamava, porque, entre dez músicos, seis eram meus irmãos com seus instrumentos de sopro. Eles tocavam hinos e dobrados nas festas cívicas da cidade. Num 7 de setembro, meu pai de criação, o
Floro, conseguiu, todo orgulhoso, que eu fosse ao palanque declamar uma saudação à Pátria. Apesar do esforço para decorar, ocorreu-me um
branco, balbuciei alguma coisa ininteligível e, apesar do tropeço, prossegui
até o final. Criança sempre merece. Fui
parabenizado pelas autoridades e pelos meus
“primos”, e o povo aplaudiu, inclusive meus coleguinhas que, igual a mim,
certamente não entenderam o significado de muitas palavras daquele texto.
Ao terminar o curso primário, sem existência
de curso médio na cidade, meu pai, para
evitar a ociosidade, conseguiu que eu
fosse trabalhar de tarde na Farmácia do Chico Ataíde. Comecei lavando garrafas e copos. Aos poucos
passei a ajudar no balcão e até aprendi a aplicar injeção. Na Farmácia eu ganhava pouco para um adulto, porém,
era muito para uma criança. Em seguida,
meu pai me promoveu a auxiliar de despachante de embarcações, ganhando bem
mais. Não demorou, o Quitó, em seu primeiro ato de proteção, me ofereceu para trabalhar com ele,
ganhando dez vezes mais. Eu me sentia realizado como cobrador de mensalidades dos
títulos da Prudência Capitalização. Andava
muito nos dois grandes bairros da cidade,
em horário comercial, cobrando títulos que venciam em datas bastante diferenciadas. Muitos
eram os aplicadores, porém, meu grande dia era quando eu recebida a comissão de
uma grande investidora, a Da. Orovida, pois nessa ocasião, final de mês, eu ganhava, de uma só cliente, 50% de toda a minha comissão mensal.
Nas
horas vagas, no Escritório do Neder Monassa, aprendi datilografia, usando método sem mestre e também procurava ajudar o Quitó em pequenos serviços na contabilidade. Vendo
esse meu interesse, ele me ofereceu para trabalhar na casa dele em final de ano. Já estava casado com a Yolanda Vieira de Figueiredo,
bela jovem na cidade, destacada no concurso de beleza promovido
pelo Jornal, a Voz de Serpa, editado em
mimeógrafo pelo meu primo Antonino
Rebelo de Mendonça. Entre várias
candidatas, ela disputou o primeiro lugar com minha professora de 5º. ano primário, Nilda Brasil
Teixeira, também muito bonita. Até hoje me recordo dela ao ouvir a canção de Ataulfo Alves “que saudade da professorinha/ que me ensinou o beabá / onde andará
Mariazinha”... Se por acaso aconteceu aí o meu
primeiro despertar para o amor, ela
nunca soube.
Nessa época, tive oportunidade de presenciar fatos
interessantes na vida do Quitó. Lembro
bem de dois: Um pedante
e parrudo fiscal da Receita Federal, vindo de Manaus em vistoria de
rotina, tentou difamar na cidade a
imagem de meu irmão como Contador de várias firmas , por ter pego o livro de
Vendas à Vista Diárias, da firma do Sr José Monassa que, sem noção da gravidade de sua ação, registrara
as vendas de seis meses futuros. Esse fiscal ficou muito indignado porque o
Quitó fez uma defesa, acatada pela Receita, explicando que aquele não era o
livro oficial, mas um abandonado que serviu de brincadeira de uma criança, a
filha do casal, e juntou o correto que ele escriturava.
Esse fiscal
ficou frustrado pois perdera, na
época, uma boa comissão sobre essa
multa considerada grave. Ao falar
mal do Quitó, no bar da praça principal
da cidade, o dono, o Guiomar, um extremado gozador, lhe disse: “ se eu fosse o Senhor eu teria
muito cuidado pois o senhor não sabe com
quem está se metendo, eles são muitos irmãos, unidos e fortes e olhe, não são de brincadeira” . O fiscal falou que realmente já havia desconfiando o quanto o tal de Quitó era benquisto na cidade, pois ouvira algumas
insinuações de alguns comerciantes que visitara. Puro azar
dele, tinha estado no bairro do Jauari,
na mercearia do Otoniel e, na outra ponta da cidade, no escritório de Araujo Costa, industrial com quem trabalhavam Edson e Jurandir. Ele ouvira realmente desses
meus irmãos: “Desculpe, recomendo-lhe cuidado pois o Senhor está falando de uma
pessoa muito íntegra e respeitável na cidade”.
Noutra
ocasião, já candidato a vereador, o Quitó ia
sair para um comício no interior, em reduto adversário, onde sua comitiva
enfrentaria cabos eleitorais contrários, tido como violentos. Percebi que ele portava um enorme revolver, talvez
um 38. Mano, não temes o que possa
acontecer? Ele riu e disse “ não mano, ele não tem bala
mas na cintura impõe respeito” . Sem
dinheiro para a campanha, resolvia inúmeros problemas de eleitores como podia.
Lembro de um certo dia em que a Yolanda falou séria com ele. Cuidado, Quitó, tomara que não te peçam a
mulher, porque roupas, minhas e tuas, o
terçado, a enxada, o ancinho e até minhas panelas tu tens dado a todos esses
eleitores pedintes. Com sorriso e seu
ar de graça habitual, respondeu “
Coitado deles, Yolanda, me pedem
dinheiro e como dizem que é pra comprar
essas coisas, eu não tenho alternativa.
Mas não te preocupes, depois a gente repõe” Ao que ela retrucou: então, providencia logo pelo menos a minha
panela.
Na foto, o Rio Amazonas, subindo lentamente em vários meses, ultrapassa, em certos anos, os limites habituais.
Permitam-me
realçar como meu irmão se preocupava comigo. Nos meus 14 anos, após a morte de Nunila
Barros, minha querida mãe de criação, passei a morar na casa de meus tios, que eu
chamava de avós, Vicente Geraldo do
Mendonça Lima e Joana Rebelo de Mendonça.
Ao final de 1953, o Quitó me encontrou na rua e insistiu para que eu fosse morar com eles,
alegando que, eu tendo um irmão na cidade, não justificava morar com os tios. Morei
pouco tempo com eles, pois logo em seguida fui trabalhar em Manaus, numa das mais importantes empresas do Amazonas, na época, I. B. Sabbá & Cia. Ltda.
Nesse
entretempo, Quitó foi eleito Deputado
Estadual, o mais votado no Estado do
Amazonas, para o período 1955/1959, votos conquistados graças a sua maneira de
trabalhar, com interesse, seriedade e
dedicação. No
início de 1955, ao assumir o mandato de
Deputado Estadual, mudou sua residência para Manaus, juntamente com sua
esposa Yolanda e seus filhos Maria das
Graças (21/08/1949), Nelson
(29/07//1950), Alberto (31/07/1951) e
Fátima (30/12/1953 a 04/09/2014) . Em Manaus nasceu o caçula, o Antonio (09/06/1955).
Logo em seguida, ele me procurou na Pensão
Síria, dizendo que eu tinha que mudar pra casa dele. Tentei convence-lo de que estava muito bem,
dividindo um quarto com um grande amigo,
o itacoatiarense Mozar, e que nos sentíamos muito felizes pelo tratamento carinhoso
que recebíamos do proprietário da pensão,
Sr. Armed Mamed e sua esposa.
Também falei da boa localização, na rua da Instalação, que me permitia
ir a pé para o trabalho e para todo o centro de Manaus, na época com agradável
estrutura, inclusive de um forte comércio, do popular ao requintado. Nada justifica, disse-me ele, “ eu estar morando em Manaus e tu numa
pensão”. Pedi-lhe um tempo.
Dois dias depois ele voltou e me convenceu ao dizer “ vim te buscar agora
e tenho a certeza que não farás desfeita ao teu irmão” .
Em Itacoatiara, foi procurado por um representante da Seguradora Equitativa, que, de passagem pela cidade, insistiu em viajar em seu lugar naquele vôo de retorno. Esse
Senhor foi ao bar da praça da Matriz, ponto de encontro na cidade, e falou horrores do Deputado, dizendo da falta
consideração de um homem público insensível,
pois, embora ouvisse detalhadamente os
motivos de sua extrema necessidade de chegar em Manaus naquele dia, ele não
cedeu seu lugar nem concordou em viajar na lancha que sairia logo
em seguida, mesmo que lhe pagassem a passagem.
Esse Senhor, gritou pra todo
mundo ouvir, “ não merece representar seu povo” e acrescentou, em tom de galhofa: Vejam só a gracinha da
alegação desse Deputado imbecil -- “ lamento mas não posso lhe ceder a vaga, assumi
compromisso de almoçar com minha esposa”.
Enquanto desabafava sua raiva, um garoto chegou gritando, gente, eu vi, eu
vi, um avião acabou de explodir no ar. Foi
aí que esse Senhor calou-se, ficou pálido e, depois de alguns minutos com a cabeça sobre a
mesa do bar, brando voltou a falar : “gente, agora só viajarei depois da missa de
7º. dia desse Deputado que salvou a minha vida”. Cumpriu a promessa, e assim, duas vidas foram salvas. Destino?
Agradeço informações para melhoria deste texto: de meu sobrinho Nelson Mendonça, do amigo
Raimundo Gomes e do saudoso primo Antonildo Mendonça.