terça-feira, 25 de fevereiro de 2020




ANTONIO VITAL DE MENDONÇA (QUITÓ) meu irmão17.08.1925 / 09.08.1955

O Quitó,  nos seus 15 a 16 anos, tocava trompa,   sob a regência do  professor paraense, Raimundo Ubirajara FONA, único maestro  na cidade. A “Orquestra dos Mendonças”, como o povo chamava, porque, entre dez músicos, seis eram meus irmãos com seus instrumentos de sopro. Eles  tocavam hinos e dobrados  nas festas cívicas da cidade.  Num 7 de setembro, meu pai de criação, o Floro,  conseguiu, todo orgulhoso,  que eu fosse ao palanque  declamar uma saudação à Pátria.  Apesar do esforço para decorar, ocorreu-me um branco, balbuciei alguma coisa ininteligível e, apesar do tropeço, prossegui até o final.  Criança sempre merece. Fui parabenizado pelas autoridades e  pelos meus “primos”,  e o povo aplaudiu,  inclusive meus coleguinhas que, igual a mim, certamente não entenderam o significado de muitas palavras daquele texto.

 Ao terminar o curso primário, sem existência de curso médio na cidade, meu pai,  para evitar a ociosidade,  conseguiu que eu fosse trabalhar de tarde na Farmácia do Chico Ataíde.  Comecei lavando garrafas e copos. Aos poucos passei a ajudar no balcão e até aprendi a aplicar injeção.  Na Farmácia eu ganhava pouco para um adulto, porém, era muito para uma criança.  Em seguida, meu pai me promoveu a auxiliar de despachante de embarcações, ganhando bem mais.  Não demorou, o Quitó, em seu  primeiro ato de  proteção, me ofereceu para trabalhar com ele, ganhando dez vezes mais. Eu me sentia realizado como cobrador de mensalidades dos títulos da Prudência Capitalização.  Andava muito nos dois grandes bairros da cidade,  em horário comercial, cobrando títulos que venciam em datas bastante diferenciadas.   Muitos eram os aplicadores, porém, meu grande dia era quando eu recebida a comissão de uma grande investidora, a  Da. Orovida,  pois nessa ocasião,  final de mês,  eu ganhava, de uma só cliente,  50% de toda a minha comissão mensal. 

  Nas horas vagas, no Escritório do Neder Monassa,   aprendi  datilografia,  usando método sem mestre e também  procurava ajudar o Quitó  em pequenos serviços na contabilidade.    Vendo esse meu interesse, ele me ofereceu para trabalhar  na casa dele em final de ano.     Já estava  casado  com a Yolanda Vieira de  Figueiredo,  bela  jovem na cidade,  destacada no concurso de beleza promovido pelo Jornal,  a Voz de Serpa, editado em mimeógrafo pelo meu primo  Antonino Rebelo de Mendonça.  Entre várias candidatas, ela disputou o primeiro lugar  com minha  professora de 5º. ano primário, Nilda Brasil Teixeira,  também muito bonita.  Até hoje me recordo dela  ao ouvir a canção de Ataulfo Alves  “que saudade da professorinha/  que me ensinou o beabá / onde andará Mariazinha”... Se por acaso aconteceu aí o   meu primeiro despertar para o amor,  ela nunca soube.

 Voltemos ao trabalho. Em época de Imposto de Renda, passei a ajudar o Quitó nas escriturações contábeis utilizando a carteira dele,  foto abaixo.  
  Nessa ocasião, conheci melhor o meu irmão (já não era mais chamado de primo) e vi  o quanto ele era estudioso.   Além de livros de contabilidade,  estudava com afinco direito em tantos outros, dentre os quais me lembro de  uma coleção de Pontes de Miranda, respeitável jurista da época.  Atuou com sucesso como rábula e  aprofundou seu conhecimento em causas trabalhistas e tributárias.  Certo dia, foi  visitado pelo seu cliente Arnóbio Oliveira que  não parava de repetir elogios,  impressionado  com a minha caligrafia.    Insistiu que o  Quitó me levasse para trabalhar na firma Ilídio Ramos Irmãos, uma das mais importantes na cidade.  Por ética, o Quitó disse que não faria tal pedido pois era o guarda livro deles.  O  Arnóbio  tomou a iniciativa e conseguiu que eu fosse admitido naquela que foi uma importante firma. Comecei aos 14 anos de idade, como auxiliar de contabilidade, com  carteira assinada aos 16, limitada por Lei.    Atuei na mesma firma como atendente nos serviços de Agentes da Panair do Brasil, onde adquiri muito conhecimento de organização e de correspondência comercial.]

 Nessa época, tive oportunidade de presenciar fatos interessantes na vida do Quitó.  Lembro bem de dois:   Um pedante  e parrudo fiscal da Receita Federal, vindo de Manaus em vistoria de rotina,  tentou difamar na cidade a imagem de meu irmão como Contador de várias firmas , por ter pego o livro de Vendas à Vista Diárias, da firma   do Sr José Monassa que,  sem noção da gravidade de sua ação, registrara as vendas de  seis meses futuros.  Esse fiscal ficou muito indignado porque o Quitó fez uma defesa, acatada pela Receita, explicando que aquele não era o livro oficial, mas um abandonado que serviu de brincadeira de uma criança, a filha do casal, e juntou o correto que ele escriturava.

   Esse fiscal ficou frustrado  pois perdera, na época,   uma boa comissão sobre essa multa considerada  grave.      Ao falar mal do Quitó,  no bar da praça principal da cidade, o dono, o Guiomar,  um  extremado gozador,  lhe disse: “ se eu fosse o Senhor eu teria muito cuidado pois o senhor  não sabe com quem está se metendo,   eles são muitos irmãos, unidos e  fortes e olhe,  não são de brincadeira” .  O fiscal falou que realmente  já havia  desconfiando o quanto o tal de Quitó  era benquisto na cidade, pois ouvira algumas insinuações de alguns comerciantes que visitara.   Puro azar dele, tinha estado no  bairro do Jauari, na mercearia  do  Otoniel e, na outra ponta da cidade,  no escritório de  Araujo Costa, industrial com quem  trabalhavam  Edson e Jurandir. Ele ouvira realmente desses meus irmãos: “Desculpe, recomendo-lhe cuidado pois o Senhor está falando de uma pessoa muito íntegra e respeitável na cidade”.

Noutra ocasião, já  candidato a vereador, o  Quitó  ia sair para um comício no interior, em reduto adversário, onde sua comitiva enfrentaria cabos eleitorais contrários, tido como violentos.  Percebi que ele portava um enorme revolver, talvez um 38.  Mano, não temes o que possa acontecer?    Ele riu e disse “ não mano, ele não tem bala mas na cintura   impõe respeito” .   Sem dinheiro para a campanha, resolvia inúmeros problemas de eleitores como podia. Lembro de um certo dia em que a Yolanda falou séria com ele.  Cuidado, Quitó, tomara que não te peçam a mulher, porque roupas, minhas e tuas,   o terçado, a enxada, o ancinho e até minhas panelas tu tens dado a todos esses eleitores pedintes.   Com sorriso e seu ar de graça habitual, respondeu  “ Coitado deles, Yolanda,  me pedem dinheiro e  como dizem que é pra comprar essas coisas, eu não tenho alternativa.  Mas não te preocupes, depois a gente repõe”  Ao que ela retrucou:  então, providencia logo pelo menos a minha panela. 

  Foi  eleito vereador, bem votado,  em 16.12.1951.  Quitó tinha boa oratória, era inteligente, correto, tinha presença de espírito,  era sorridente, simpático e muito trabalhador. Como vereador, muito atuante, lutou arduamente e conseguiu,  entre tantas causas, que o sonho antigo dos itacoatiarenses se transformasse em um  projeto realizável, como aconteceu,  para  construção da estrada que liga  Manaus a Itacoatiara, com o nome ESTRADA ANTONIO VITAL DE MENDONÇA.    Como representante do SESC, amigo que era do Dr. Lindoso,  ativou muitos cursos a jovens em Itacoatiara, onde cheguei a estudar um pouco de taquigrafia com o Prof. Paulo Benigno de Lima. Ajudou a fundar o Colégio que homenageia  o seu nome.    Livrou do serviço militar, precisamente do Tiro de Guerra, inúmeros jovens ribeirinhos cujas famílias tinham, naquele ano, perdido suas casas e que viviam precariamente de doações de roupas e alimentos,  ocupando grupos escolares e igrejas da cidade. 

Na foto,  o Rio Amazonas, subindo lentamente em vários meses, ultrapassa,  em certos anos,  os limites habituais.


   
Permitam-me realçar como meu irmão se preocupava comigo.   Nos meus 14 anos, após a morte de Nunila Barros,  minha querida mãe de criação,   passei a morar na casa de meus tios, que eu chamava de avós,  Vicente Geraldo do Mendonça Lima e Joana Rebelo de Mendonça.   Ao final de 1953,  o   Quitó me encontrou na rua e  insistiu para que eu fosse morar com eles, alegando que, eu tendo um irmão na cidade, não justificava morar com os tios.  Morei  pouco tempo com eles, pois logo em seguida fui trabalhar em Manaus,  numa das mais  importantes empresas do Amazonas, na época,  I. B. Sabbá & Cia. Ltda.

Nesse entretempo, Quitó foi eleito  Deputado Estadual,   o mais votado no Estado do Amazonas, para o período 1955/1959, votos conquistados graças a sua maneira de trabalhar, com interesse, seriedade  e dedicação.    No início de 1955,  ao assumir o mandato de Deputado Estadual, mudou sua residência para Manaus, juntamente com   sua esposa  Yolanda e seus filhos Maria das Graças (21/08/1949),  Nelson (29/07//1950),  Alberto (31/07/1951) e Fátima (30/12/1953 a 04/09/2014) .  Em  Manaus nasceu o caçula, o  Antonio (09/06/1955). 

 Logo em seguida, ele me procurou na Pensão Síria, dizendo que eu tinha que mudar pra casa dele.  Tentei convence-lo de que estava muito bem, dividindo um quarto  com um grande amigo, o itacoatiarense Mozar, e que nos sentíamos muito felizes pelo tratamento carinhoso que recebíamos do proprietário da pensão,  Sr. Armed Mamed e sua esposa.  Também falei da boa localização, na rua da Instalação, que me permitia ir a pé para o trabalho e para todo o centro de Manaus, na época com agradável estrutura, inclusive de um forte comércio,  do popular ao requintado.  Nada justifica, disse-me  ele, “ eu estar morando em Manaus e tu numa pensão”.  Pedi-lhe um  tempo.  Dois dias depois ele voltou e me convenceu ao dizer “ vim te buscar agora e tenho a certeza que não farás desfeita ao teu irmão” . 

Assim, passei a morar com eles na av. Sete de Setembro, nas proximidades da Escola Técnica de Manaus.   Agora peço que leiam com especial atenção o que ocorreu.    Por volta de 19 horas do dia   8 de agosto de 1955,   o  Quitó me convidou para irmos ao bar  Pérola da Visconde, na Esquina de Av. Sete com a rua Visconde de Porto Alegre, onde havia um telefone público.   Era precaríssimo o sistema telefônico em Manaus.    Esperava-se minutos intermináveis para ter um sinal.  Ele insistia.  Quando em longa espera  a ligação acontecia, o telefone chamado estava sempre ocupado. Talvez o horário de muita demanda, pensou.    Voltamos às  20 horas, depois  às 21 e  às 22 horas,  e o problema se repetia.    A  Yolanda finalmente pediu,  quase implorando,  que ele desistisse desse telefonema pois já era muito tarde.  Ele disse que seria a última tentativa.   Finalmente, fomos por volta de 23 horas e ele conseguiu falar uns 15 minutos, justificando  que era ele quem deveria fazer aquele voo  de reconhecimento do traçado da estrada Manaus/Itacoatiara, pela qual tanto lutou,  e não o  Governador Plínio Ramos Coelho, foto abaixo,   que se mostrava irredutível até ser convencido em ceder o seu lugar.  Chegando em casa, satisfeito, avisou de sua viagem e a Yolanda lamentou lembrando que ele prometera, no dia seguinte,  almoçar com ela  em um restaurante.  “Não te preocupes, minha querida, essa viagem é de suma importância pra mim, está com hora de retorno rigorosamente cronometrada de forma que eu te prometo, chegarei a tempo de irmos a esse almoço”.



 Em Itacoatiara,  foi procurado por um  representante da Seguradora Equitativa,  que, de passagem pela cidade,  insistiu em viajar  em seu lugar naquele vôo de retorno.   Esse Senhor foi ao bar da praça da Matriz, ponto de encontro na cidade,  e falou horrores do Deputado, dizendo da falta consideração   de um homem público insensível, pois,  embora ouvisse detalhadamente os motivos de sua extrema necessidade de chegar em Manaus naquele dia, ele não cedeu seu lugar  nem  concordou em viajar na lancha que sairia logo em seguida, mesmo que lhe pagassem a passagem.  Esse Senhor,  gritou pra todo mundo ouvir, “ não merece representar seu povo”  e acrescentou,  em tom de galhofa: Vejam só a gracinha da alegação desse Deputado imbecil -- “ lamento mas não posso lhe ceder a vaga, assumi compromisso de almoçar com minha esposa”.  Enquanto desabafava sua raiva, um garoto chegou gritando, gente, eu vi, eu vi, um avião acabou de explodir no ar.  Foi aí que esse Senhor calou-se, ficou pálido e,  depois de alguns minutos com a cabeça sobre a mesa do bar,  brando voltou a falar :  “gente, agora só viajarei depois da missa de 7º. dia desse Deputado que salvou a minha vida”. Cumpriu a promessa,  e assim, duas vidas foram salvas.  Destino?

 Agradeço informações para melhoria deste texto: de  meu sobrinho Nelson Mendonça, do amigo Raimundo Gomes e do saudoso primo Antonildo  Mendonça.