sábado, 5 de dezembro de 2020

PEDRO MENDONÇA JÚNIOR

 

PEDRO MENDONÇA JÚNIOR  – meu irmão –  (25.12.1923 /13.04.1999)

 

Até meus 12 aos de idade, foi mantida em segredo minha adoção,  pelo meu primo Floro e sua   esposa Nunila.   Assim, eu chamava meu pai consanguíneo de Tio e, de  primos os meus irmãos.

                   


      Durante minha infância tive boa convivência com o Pedro, depois ele foi para Manaus e, quando eu mudei para Manaus, já não o encontrei pois passou a residir em Boa Vista.   Esse desencontro em nada abalou a nossa relação fraternal. Em criança eu ia muito à casa de meu Pai Pedro, que eu chamava de tio Pedroca, curtia as brincadeiras com meus   primos, na verdade meus irmãos. Tomava banho de igarapé e ouvia os ensaios musicais deles num grande salão.  Pedro tocava Tuba, na orquestra dos Mendonças, assim conhecida em Itacoatiara porque eles eram maioria no grupo.   Nas festas cívicas, a orquestra se apresentava em palanques na praça pública.  Empolgado com o tamanho do instrumento que Pedro tocava, eu dizia aos amiguinhos que, se ele soprasse mais forte,     o som da Tuba seria igual a de um trovão e abafaria todos os demais instrumentos. 

 Certa manhã, entrei sozinho no salão onde guardavam os instrumentos. Achei feios uns elásticos num clarinete.  Tirei todos.   Pedro me flagrou e me deu uma bronca, depois conto as outras, pois aqueles elásticos substituíam molas danificadas. 

A segunda, veio quase na mesma época.  Eu fugia de casa para tomar    banho nas “pedras”, um lugar aprazível, ao lado do bairro de Jauary, com bela arborização cortada por um caminho que nos levava a uma pequena praia.  Pescadores desciam na corredeira do rio e retornavam no remanso, formando um  círculo com suas canoas deslizando em alta velocidade.       De uma ribanceira próxima, o pessoal que aguardava para comprar peixes, aplaudia o melhor lançamento das tarrafas que se abriam no ar como paraquedas e mergulhavam para retornar cheias de  

jaraqui. 
  Enquanto isso, do alto de uma árvore, agarrados num cipó, a garotada se lançava ao rio aos gritos de Tarzan, soltando-se na correnteza e boiando a tempo de alcançar as raízes de uma enorme árvore encalhada  paralelamente à praia, tudo isso numa aventura para desfrutar,  segurando nas raízes submersas, do prazer de ter o corpo massageado pela corredeira do rio.   Certa vez, errei o ponto de retorno e perdi o fio da correnteza que levava de volta à praia aqueles que, como eu, não sabiam nadar.  Um jovem me conduziu em suas costas e eu entendi fosse uma brincadeira.   Enquanto eu corria para um novo salto, o Pedro surgiu do nada, pegou-me pelo braço e me proibiu de repetir a aventura, falando-me do   risco de vida que eu ignorava.  Só ficou tranquilo quando me deixou na porta da minha casa. 

Desde cedo percebi que o Pedro era do tipo mais reservado, parecido com nosso pai, de poucas palavras, menos brincalhão, embora muito gentil.  Futebolista, era torcedor do Botafogo de Itacoatiara e do Rio de Janeiro e, bem mais tarde, já em Boa Vista, Roraima, foi sócio fundador do Barés Esporte Clube, onde jogou como zagueiro.   Ainda muito jovem começou a trabalhar com nosso pai, em contabilidade, na firma Araujo Costa em Itacoatiara.  Depois, passou a viajar em embarcações oferecendo a comerciantes do Rio Madeira produtos de sua representação, cuja atividade era chamada de  caixeiro viajante. 

 Numa de suas viagens de Itacoatiara para Porto Velho, a bordo da embarcação N. S. de Nazaré, do Sr.  Farid Semem Filho, conheceu a irmã dele, a bela jovem Ália Semen, nos seus dezessete anos de idade, que seguia para  Bom Futuro do Acará, sua terra natal, município de Manicoré.  Tempo depois dessa viagem, Pedro foi a casa do Sr. Farid e, sem rodeios, foi direto ao assunto perguntando: Ália, você quer casar comigo?  Apesar de surpreendida com a pergunta, ela respondeu que sim.  Depois, se perguntava receosa se não tinha sido precipitada eis que pouco conhecia o pretendente, apesar de que, no curto tempo em que conversaram na viagem, ter tido ótima impressão daquele jovem cavalheiro, educado, de boa conversa e respeitoso.     

O certo é que ambos foram flechados pelo Cupido, de forma certeira no alvo da paixão à primeira vista. Um ano depois, 19 de março de 1950, estavam casados e fixaram residência em Boa Vista, Território Federal do Rio Branco, onde passaram uma temporada morando com d. Antonia Dutra, a dona Antonica,  sogra do mano Gerson, enquanto estruturavam seu próprio lar











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   Dessa a sólida união, tiveram 6 filhos:   José (Zezinho) que morreu com 12 dias de nascido, por precariedade que existia no hospital de Boa Vista.  A partir daí, o casal se deslocava para Manaus, onde nasceram Pedro Mendonça Neto, Samira e Maria da Conceição. Com a melhora da estrutura hospitalar, Ália aceitou que o Farid nascesse em Boa Vista.   Entretanto, por se sentir mais segura, preferiu que a caçula Ana Maria nascesse em Manaus.


Pedro iniciou sua carreira em serviço público em 1952, entre os convocados para trabalhar na transição do Território Federal do Rio Branco para Território Federal de Roraima, que, em 1988, passou a ser o atual Estado de Roraima.   Atuou como inspetor de Educação Indígena, visitando todas as tribos da área, com destaque aos Macuxis.  Por sua maneira de ser, atencioso e acolhedor, recebeu para morar em sua casa,  três jovens índios, dois da tribo Macuxis, o Manoel Beré e o Adelino que se alternavam na residência por pouco tempo, enquanto a   Leonilia,  da tribo Wapixana, permaneceu por alguns anos.  

Ele exerceu várias funções no Palácio do Governo de Roraima, onde foi sempre muito elogiado e reconhecido pela eficiência e assiduidade com que atuava principalmente na contabilidade da Secretaria de Finanças do Território.

Entre tantas outras atividades, por muito tempo foi gerente  do Cinema Boa Vista,  administrador da Fazenda São Luiz, no encontro do Rio Tacutu com o Uraricoera. Como católico praticante, destacou-se como  um dedicado lider no grupo atuante pela construçao da Igreja de São Francisco, foi padrinhjo da Imagem de São Pedro da Igreja Nossa da Conceição, na época a Matriz, e membro das congregações Vicentino de Paula e Mariano, até seus últimos dias.

Ainda em Boa Vista, trabalhou como guarda livros de uma grande empresa, Said S. Salomão, representou outras como Sapatos Vulcabrás, Mobiloi, o IAPC, Instituto de Aposentadoria dos Comerciários e foi Secretário na Associação Comercial de Roraima.

 Um parêntese. Vejam mais um episódio entre mim e Pedro. Por volta do ano de 1966, recebi dele uma carta vinda de Boa Vista, de três páginas, caligrafia esmerada, elogiando nossa educação, a união familiar e o carinho que nutria por mim, ressaltando que a primeira coisa que fez foi procurar ansiosamente, junto à estranha encomenda que eu lhe enviara, a carta que não lhe escrevi.  Acrescentou, porém, que ficara muito triste e bastante decepcionado com a minha atitude por lhe ter enviado tão inusitada encomenda, valendo-me da boa vontade de um dos seus melhores amigos.   Só aí eu soube que dois jovens brincalhões resolveram pregar uma peça num gentil cidadão, de uns 50 anos de idade, que em conversa nos poucos dias de hospedagem na mesma pensão onde residíamos, dissera que jamais levava encomenda quando viajava de avião, fosse para quem fosse. Sem que eu soubesse, resolveram testar se ele recusaria levar uma encomenda, dizendo a meu pedido, ao que ele respondeu: “Vejam bem, só abrirei esta exceção porque é um pedido do irmão de meu maior amigo a quem eu jamais negaria um favor”. Tive que justificar ao Pedro, em minuciosa carta, que eu tinha sido vítima de uma brincadeira, inadmissível e de extremo mau gosto, armada por meus dois “mui amigos”, pois eu jamais lhe mandaria um embrulho cujo conteúdo era um paralelepípedo.

 Pedro foi transferido para a Representação de Roraima atuando na área de finanças, em Manaus. Depois, no ano de 1970, foi lotado no SNI - Serviço Nacional de Informação, onde ficou até os 70 anos de idade, quando se aposentou por problemas na vista.   

Nesse último emprego, sempre foi muito elogiado, inclusive pessoalmente pelos Generais Geisel e Figueiredo, como um dos melhores funcionários nos controles financeiros daquele órgão, razão por que era o único civil, nos vários governos militares, a ser mantido num cargo que, por norma, seria exercido por um major.  Quando Presidente do SNI, o general Figueiredo chegou a aceitar convite para almoçar em sua casa e desfrutar da excelente culinária da querida cunhada Ália.

Certo dia, Pedro e Ália nos deram o prazer de passar um dia conosco em Niterói. Em conversa após o almoço,  Pedro comentou que trabalhara no SNI.  Pra nossa surpresa, minha saudosa filha Cristina, na época jovenzinha, perguntou-lhe: tio, então o Senhor era dedo duro?   Ele deu uma risada e respondeu:   não, minha filha, eu sempre trabalhei apenas na área contábil, onde eu era conhecido como Caxias por manter rigorosamente em dia todo o meu serviço. 

 Pedro era um superador de desafios.  Nesse período de SNI, com salários estagnados para o nível médio, decidiu estudar sozinho, de madrugada, visando concluir a faculdade para melhorar sua posição no plano de cargos e salários.  Como só tinha o primário, num mesmo ano conseguiu ser aprovado no 1º e 2º Graus, valendo-se dos artigos 91 e 99 do código de diretrizes de base, e, logo em seguida, num concorrido vestibular da UFAM obteve mais uma  aprovação, onde se formou com louvor em contabilidade.  Pelos seus méritos, notas acima da média, ser o mais velho na classe, 55 anos de idade, e desfrutar de grande estima de seus colegas e professores, foi escolhido para ser o orador da turma.

   Depois de sua formatura, novo desafio o esperava: a implantação de serviços de computação nas repartições públicas. Imaginem que, de um modo geral, as pessoas com mais de 50 anos de idade, tinham verdadeiro pesadelo e desistiam diante do complicadíssimo sistema utilizado na época.   Como só poderia continuar no cargo quem estivesse apto, Pedro não se intimidou e aceitou participar do curso que o SNI ofereceu, em Brasília, a servidores em todo o Brasil.  Sua esposa e filhos ficaram muito apreensivos durante os três dias incomunicáveis de duração do curso, até receberem um telefonema do SNI e vibrarem com os parabéns dados pelo bom desempenho e aprovação do PEDRO, como um dos primeiros colocados no curso. Mais uma vitória inesquecível.


Na maioria das vezes, tenho procurado resgatar a memória de meus irmãos, baseado na convivência que tive com eles, a partir de minha juventude mas, agora,  devo ao meu querido sobrinho Pedro Mendonça Neto, que disse ter sido auxiliado por seus irmãos, a grandiosa colaboração ao me ter enviado quase todo o conteúdo  que permitiu enriquecer substancialmente este texto.  

 Na foto ao lado, meu aniversário em junho 1992, ao lado dos saudosos manos Renato, Pedro, Edson e Jurandir.

Pedrinho me contou mais esta: Papai era carinhoso com todos os irmãos,  principalmente com o seu querido mano Edson. Nas festas de aniversários, o papai pedia ao tio Edson, que era muito     brincalhão e amigo das crianças, para não cantar a música da pescaria que a criançada se divertia ao repetir, cantando, apenas o final de cada verso. Acontece que a história musicada da pescaria terminava com as palavras: vagabunda e pirarucu, cujos finais, repetidos em coro soavam palavrões inaceitáveis pelo papai.  Mas tio Edson nos avisava: “cantem baixinho porque o mano Pedro não gosta”. Realmente ninguém ousava dizer palavrão perto do papai que, embora fosse severo educador, tinha, junto com a mamãe, um coração de ouro.  Ajudavam muito aos que deles precisassem.

 Sou testemunha, por experiência própria, desse valor admirável desse meu irmão.  Certa vez, insisti que ele comprasse minha eletrola para a lanchonete N. S. da Conceição, que abriu na rua Ipixuna, funcionando com o trabalho da  Ália de dia e ele, de noite.   Apesar da minha insistência, explicou-me o motivo de sua recusa:   mano, eu não admito vender bebida alcóolica, mesmo sabendo que meu lucro seria bem maior, para evitar aglomeração de pessoas inconvenientes e a música pode se tornar um chamariz.    Quando ele soube, por terceiros, que eu precisava vender para ajudar na despesa de  viagem ao Rio  para tratamento de saúde de minha esposa Juliana, ele me procurou e disse : mano, faço questão de te dar o dinheiro mas tu ficas com a eletrola.  Com jeito, expliquei que isso não me seria confortável aceitar e ponderei que, com a eletrola, eu daria uma coleção de bons discos de músicas românticas, a gosto de público mais exigente, evitando a frequência que ele temia.  Finalmente, sei que, na realidade, ele comprou a eletrola apenas para me ajudar.

 
 Por coincidência ou, acreditamos,  por merecimento ao seu valor espiritual,  Pedro teve a felicidade de receber a benção presencial de um padre, no momento exato de sua passagem, desta para a outra vida.

Pedro e Ália formavam um casal exemplar, dedicado, disciplinador, amoroso e muito preocupado em fazer feliz, um ao outro e, os dois, a todos os seus familiares e amigos ou conhecidos.    Esses valores se perpetuaram no grande exemplo assimilado pelos seus filhos que, com certeza, estão transmitindo às novas gerações.

 

 

domingo, 3 de maio de 2020

WILSON VITAL DE MENDONÇA




     
 WILSON VITAL DE MENDONÇA meu irmão.                                             (27.07.1916/25.11.1971) 
       

Era o segundo dos onze filhos do primeiro matrimônio de meu pai.  Na época, os filhos mais velhos colaboravam na educação dos irmãos. O Wilson, junto com o Gerson, Jurandir e Otoniel, exerciam muito bem essa função.   Assim, ele foi um conselheiro habilidoso e firme, respeitado pelos irmãos mais novos, notadamente durante o tempo em que morou no casarão da numerosa família.  

 Na foto, o Wilson, a esposa Inês ( Nenen), a cunhada Irene Dutra com as filhas Vera Lucia e Gersirene. 

O Wilson, ainda muito jovem, trabalhou em Manaus para a firma Benzecry, tendo sido afastado por hanseníase, diagnóstico contestado, anos depois, pelo Dr. José Mendes que lhe prestou assistência por muito tempo, com dedicação espontânea de um verdadeiro amigo.  Ouvi pessoalmente do dr. José Mendes que o Wilson tinha uma doença degenerativa, cujo diagnóstico não recordo, acrescentando, na sua forma eloquente de falar, que rasgaria seu diploma se fosse hanseníase.   Dr. José, excelente médico, mudou-se com a família para Manaus quando eleito Deputado Estadual.   Era casado com Flavia Perales, saudosa irmã de minha atual querida esposa Lucia Perales Rabello.

Os irmãos Edson, Quitó e João Batista, passaram a morar com o Wilson em sua nova residência assim que ele casou com Ines Pereira Nicanor, a adorável Nenen.   Edson pouco ficava em casa pois viajava durante 4 a 6 meses, comprando madeiras no altos rios do Amazonas para a serraria do Sr. Araújo Costa, onde trabalhava.   João Batista foi o único dos irmãos que conseguiu prosseguir os estudos em Manaus, no Ginásio Amazonense, graças ao apoio financeiro do Wilson, portanto, só passava as férias em Itacoatiara.   O Quitó, o mais presente, residiu com ele até casar-se.  As duas únicas meninas, Tereza e Ermelinda, ao florescer da juventude foram para Boa Vista (RO), onde moraram com apoio dos manos Gerson e Pedro, até mudarem para Belo Horizonte.

Na minha infância, frequentei muito a casa do Wilson.  Imaginem a minha aventura ao tomar banho no Rio Amazonas aproveitando a época de grandes enchentes que chegavam a atingir sua casa, mesmo correndo o risco de ser atacado por peixes agressivos como piranha e candiru.        

   
                             Foto da Casa do Wilson, numa das enchente                               

             Wilson tinha um espírito alegre, carinhoso e demonstrava muita habilidade ao relacionar-se com as crianças.  Tinha prazer em lecionar Inglês, Contabilidade e Datilografia gratuitamente a quem demonstrasse interesse. Nos meus 12 anos de idade, estudei com ele um pouco de inglês. Não fui bom aluno, faltava às aulas, mas me fascinei com a palavra handkerchief, com a qual me exibia ao desafiar meus coleguinhas a traduzi-la. 

Ele era icentivador e colaborador das festas juninas que se encerravam com a procissão de canoas no igarapé que contornava uma grande  ilha,   formada por aningais e  outras plantas aquáticas, surgidas, ao longo do tempo,  no centro da  lagoa do bairro do Jauary, onde Wilson morava.   Essa procissão aquática tinha à frente a igarité-mor que conduzia o Padre, destacando-se, rodeada de flores, a imagem de São Pedro, o homenageado. A segunda e a terceira canoas eram destinadas aos músicos e aos cantores que entoavam músicas sacras.    A partir daí, a fila era formada por inúmeras outras canoas bastante enfeitadas com bandeirinhas e lanternas de papel colorido, lotadas de festivos devotos.   Ao cair da tarde, o povo se aglomerava nas ruas laterais para assistir a essa procissão, com músicas e luzes de velas ou lamparinas, que, nos centros dos balões de papéis coloridos, se transformavam em lanternas multicores, cujas luzes deslizavam cintilantes, refletidas nas plácidas águas do igarapé.  Ouvia-se, também, o toque dos remos, em ritmo cadenciado, provocando sons semelhantes ao de pratos instrumentais ao tocarem na água e de taróis ao baterem nas laterais das canoas,  como se fossem verdadeiros percursionistas integrantes da orquestra.              Era um espetáculo singelo e sublime, muitas vezes envolto em prata pela luz da lua, aumentando, assim, no povo que assistia, o sentimento de deslumbramento e de fé.    

                 Jovens nessa foto, o meu irmão mais velho, o Gerson (fardado) e o  Wilson,  o mais alto da família.

Segundo consta do blog do grande historiador amazonense, meu amigo Francisco Gomes, " Wilson foi   um  auto didata, repentista e poeta, idealizador da imensa boneca de pano, criada em 1953 pelo pescador e carnavalesco João Rosas (1920-2002), o popular João Bringela.   Intitulada inicialmente BONECA DO JAUARY, depois a TIA SUZANA e por último a BONECA DE PANO DO JAUARI que continua desfilando e, diz a crença, dá sorte no amor,  cura dores de cabeça, mau olhado e outros males que aflijam os participantes do bloco.    Lembra  o Francisco a letra de uma das marchinhas que o Wilson criou, penso eu,  em homenagem às benzedeiras:  Ela é parteira  / Põe desmentidura / Coze rasgadura / e trata de tonteira. "

Esse meu irmão tinha espírito empreendedor. Com poucos recursos de sua aposentadoria financiou inicialmente umas redes de pescar.  Mais ajudava os pescadores do que se beneficiava do ganhos que auferiam.  Depois, abriu ao fundo do quintal de sua casa, que dava frente para a rua de trás, uma pequena sapataria, confiando a gerência à então jovenzinha Nazaré, a Naza, que me fez a seguinte declaração em recente telefonema:    “Trabalhei na Sapataria do Sr. Wilson até casar-me em 07/10/1969,  aos 25 anos de idade, com Olavo Barros (*). O Sr. Wilson sempre dizia que eu era o braço direito dele.  Dona Nenen e ele eram umas pérolas de pessoas.  Devo a eles e sou eternamente grata pela oportunidade que me deram e que me permitiu comprar casa, móveis e ter minha independência.”

Wilson e Nenen não tiveram filhos.  Adotaram uma criança batizada com o nome de Inês.  A Inezinha, era tratada com todo mimo, mas,  segundo consta,  ao crescer não correspondeu ao amor que recebera e que eles sofreram muito com isso, tanto que a minha irmã Ermelinda, por gratidão ao carinho que recebera na infância,  mandou buscar a  Inês (Nenen), viúva e de muita idade,  de Itacoatiara para Belo Horizonte,  para que ela recebesse um tratamento condigno até o  final de sua vida.

O amor,  entre Wilson e Nenen, era de um companheirismo admirável e  incondicional.  Para mostrar a dedicação da Nenen para com ele, costumava contar que num certo dia ele caíra ao descer a escada de casa, ficando imobilizado com uma pesada bateria de caminhão sobre o peito.  Chamou muito pela Nenem e,  como  o socorro não vinha,  conseguiu  com grande sacrifício safar-se sozinho e, ao procurá-la, encontrou-a  desmaiada pelo susto ao ve-lo naquela situação.  Depois ele ria em gozação dizendo que  “não posso dizer a Nenen que estou morrendo, tenho que avisar calmamente  que já morri  para que ela não se antecipe e morra antes de mim”. 

(*)  Olavo Barros é por mim considerado como primo, por ser filho de Arico Barros, irmão de  Nunila, minha mãe de cria


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020




ANTONIO VITAL DE MENDONÇA (QUITÓ) meu irmão17.08.1925 / 09.08.1955

O Quitó,  nos seus 15 a 16 anos, tocava trompa,   sob a regência do  professor paraense, Raimundo Ubirajara FONA, único maestro  na cidade. A “Orquestra dos Mendonças”, como o povo chamava, porque, entre dez músicos, seis eram meus irmãos com seus instrumentos de sopro. Eles  tocavam hinos e dobrados  nas festas cívicas da cidade.  Num 7 de setembro, meu pai de criação, o Floro,  conseguiu, todo orgulhoso,  que eu fosse ao palanque  declamar uma saudação à Pátria.  Apesar do esforço para decorar, ocorreu-me um branco, balbuciei alguma coisa ininteligível e, apesar do tropeço, prossegui até o final.  Criança sempre merece. Fui parabenizado pelas autoridades e  pelos meus “primos”,  e o povo aplaudiu,  inclusive meus coleguinhas que, igual a mim, certamente não entenderam o significado de muitas palavras daquele texto.

 Ao terminar o curso primário, sem existência de curso médio na cidade, meu pai,  para evitar a ociosidade,  conseguiu que eu fosse trabalhar de tarde na Farmácia do Chico Ataíde.  Comecei lavando garrafas e copos. Aos poucos passei a ajudar no balcão e até aprendi a aplicar injeção.  Na Farmácia eu ganhava pouco para um adulto, porém, era muito para uma criança.  Em seguida, meu pai me promoveu a auxiliar de despachante de embarcações, ganhando bem mais.  Não demorou, o Quitó, em seu  primeiro ato de  proteção, me ofereceu para trabalhar com ele, ganhando dez vezes mais. Eu me sentia realizado como cobrador de mensalidades dos títulos da Prudência Capitalização.  Andava muito nos dois grandes bairros da cidade,  em horário comercial, cobrando títulos que venciam em datas bastante diferenciadas.   Muitos eram os aplicadores, porém, meu grande dia era quando eu recebida a comissão de uma grande investidora, a  Da. Orovida,  pois nessa ocasião,  final de mês,  eu ganhava, de uma só cliente,  50% de toda a minha comissão mensal. 

  Nas horas vagas, no Escritório do Neder Monassa,   aprendi  datilografia,  usando método sem mestre e também  procurava ajudar o Quitó  em pequenos serviços na contabilidade.    Vendo esse meu interesse, ele me ofereceu para trabalhar  na casa dele em final de ano.     Já estava  casado  com a Yolanda Vieira de  Figueiredo,  bela  jovem na cidade,  destacada no concurso de beleza promovido pelo Jornal,  a Voz de Serpa, editado em mimeógrafo pelo meu primo  Antonino Rebelo de Mendonça.  Entre várias candidatas, ela disputou o primeiro lugar  com minha  professora de 5º. ano primário, Nilda Brasil Teixeira,  também muito bonita.  Até hoje me recordo dela  ao ouvir a canção de Ataulfo Alves  “que saudade da professorinha/  que me ensinou o beabá / onde andará Mariazinha”... Se por acaso aconteceu aí o   meu primeiro despertar para o amor,  ela nunca soube.

 Voltemos ao trabalho. Em época de Imposto de Renda, passei a ajudar o Quitó nas escriturações contábeis utilizando a carteira dele,  foto abaixo.  
  Nessa ocasião, conheci melhor o meu irmão (já não era mais chamado de primo) e vi  o quanto ele era estudioso.   Além de livros de contabilidade,  estudava com afinco direito em tantos outros, dentre os quais me lembro de  uma coleção de Pontes de Miranda, respeitável jurista da época.  Atuou com sucesso como rábula e  aprofundou seu conhecimento em causas trabalhistas e tributárias.  Certo dia, foi  visitado pelo seu cliente Arnóbio Oliveira que  não parava de repetir elogios,  impressionado  com a minha caligrafia.    Insistiu que o  Quitó me levasse para trabalhar na firma Ilídio Ramos Irmãos, uma das mais importantes na cidade.  Por ética, o Quitó disse que não faria tal pedido pois era o guarda livro deles.  O  Arnóbio  tomou a iniciativa e conseguiu que eu fosse admitido naquela que foi uma importante firma. Comecei aos 14 anos de idade, como auxiliar de contabilidade, com  carteira assinada aos 16, limitada por Lei.    Atuei na mesma firma como atendente nos serviços de Agentes da Panair do Brasil, onde adquiri muito conhecimento de organização e de correspondência comercial.]

 Nessa época, tive oportunidade de presenciar fatos interessantes na vida do Quitó.  Lembro bem de dois:   Um pedante  e parrudo fiscal da Receita Federal, vindo de Manaus em vistoria de rotina,  tentou difamar na cidade a imagem de meu irmão como Contador de várias firmas , por ter pego o livro de Vendas à Vista Diárias, da firma   do Sr José Monassa que,  sem noção da gravidade de sua ação, registrara as vendas de  seis meses futuros.  Esse fiscal ficou muito indignado porque o Quitó fez uma defesa, acatada pela Receita, explicando que aquele não era o livro oficial, mas um abandonado que serviu de brincadeira de uma criança, a filha do casal, e juntou o correto que ele escriturava.

   Esse fiscal ficou frustrado  pois perdera, na época,   uma boa comissão sobre essa multa considerada  grave.      Ao falar mal do Quitó,  no bar da praça principal da cidade, o dono, o Guiomar,  um  extremado gozador,  lhe disse: “ se eu fosse o Senhor eu teria muito cuidado pois o senhor  não sabe com quem está se metendo,   eles são muitos irmãos, unidos e  fortes e olhe,  não são de brincadeira” .  O fiscal falou que realmente  já havia  desconfiando o quanto o tal de Quitó  era benquisto na cidade, pois ouvira algumas insinuações de alguns comerciantes que visitara.   Puro azar dele, tinha estado no  bairro do Jauari, na mercearia  do  Otoniel e, na outra ponta da cidade,  no escritório de  Araujo Costa, industrial com quem  trabalhavam  Edson e Jurandir. Ele ouvira realmente desses meus irmãos: “Desculpe, recomendo-lhe cuidado pois o Senhor está falando de uma pessoa muito íntegra e respeitável na cidade”.

Noutra ocasião, já  candidato a vereador, o  Quitó  ia sair para um comício no interior, em reduto adversário, onde sua comitiva enfrentaria cabos eleitorais contrários, tido como violentos.  Percebi que ele portava um enorme revolver, talvez um 38.  Mano, não temes o que possa acontecer?    Ele riu e disse “ não mano, ele não tem bala mas na cintura   impõe respeito” .   Sem dinheiro para a campanha, resolvia inúmeros problemas de eleitores como podia. Lembro de um certo dia em que a Yolanda falou séria com ele.  Cuidado, Quitó, tomara que não te peçam a mulher, porque roupas, minhas e tuas,   o terçado, a enxada, o ancinho e até minhas panelas tu tens dado a todos esses eleitores pedintes.   Com sorriso e seu ar de graça habitual, respondeu  “ Coitado deles, Yolanda,  me pedem dinheiro e  como dizem que é pra comprar essas coisas, eu não tenho alternativa.  Mas não te preocupes, depois a gente repõe”  Ao que ela retrucou:  então, providencia logo pelo menos a minha panela. 

  Foi  eleito vereador, bem votado,  em 16.12.1951.  Quitó tinha boa oratória, era inteligente, correto, tinha presença de espírito,  era sorridente, simpático e muito trabalhador. Como vereador, muito atuante, lutou arduamente e conseguiu,  entre tantas causas, que o sonho antigo dos itacoatiarenses se transformasse em um  projeto realizável, como aconteceu,  para  construção da estrada que liga  Manaus a Itacoatiara, com o nome ESTRADA ANTONIO VITAL DE MENDONÇA.    Como representante do SESC, amigo que era do Dr. Lindoso,  ativou muitos cursos a jovens em Itacoatiara, onde cheguei a estudar um pouco de taquigrafia com o Prof. Paulo Benigno de Lima. Ajudou a fundar o Colégio que homenageia  o seu nome.    Livrou do serviço militar, precisamente do Tiro de Guerra, inúmeros jovens ribeirinhos cujas famílias tinham, naquele ano, perdido suas casas e que viviam precariamente de doações de roupas e alimentos,  ocupando grupos escolares e igrejas da cidade. 

Na foto,  o Rio Amazonas, subindo lentamente em vários meses, ultrapassa,  em certos anos,  os limites habituais.


   
Permitam-me realçar como meu irmão se preocupava comigo.   Nos meus 14 anos, após a morte de Nunila Barros,  minha querida mãe de criação,   passei a morar na casa de meus tios, que eu chamava de avós,  Vicente Geraldo do Mendonça Lima e Joana Rebelo de Mendonça.   Ao final de 1953,  o   Quitó me encontrou na rua e  insistiu para que eu fosse morar com eles, alegando que, eu tendo um irmão na cidade, não justificava morar com os tios.  Morei  pouco tempo com eles, pois logo em seguida fui trabalhar em Manaus,  numa das mais  importantes empresas do Amazonas, na época,  I. B. Sabbá & Cia. Ltda.

Nesse entretempo, Quitó foi eleito  Deputado Estadual,   o mais votado no Estado do Amazonas, para o período 1955/1959, votos conquistados graças a sua maneira de trabalhar, com interesse, seriedade  e dedicação.    No início de 1955,  ao assumir o mandato de Deputado Estadual, mudou sua residência para Manaus, juntamente com   sua esposa  Yolanda e seus filhos Maria das Graças (21/08/1949),  Nelson (29/07//1950),  Alberto (31/07/1951) e Fátima (30/12/1953 a 04/09/2014) .  Em  Manaus nasceu o caçula, o  Antonio (09/06/1955). 

 Logo em seguida, ele me procurou na Pensão Síria, dizendo que eu tinha que mudar pra casa dele.  Tentei convence-lo de que estava muito bem, dividindo um quarto  com um grande amigo, o itacoatiarense Mozar, e que nos sentíamos muito felizes pelo tratamento carinhoso que recebíamos do proprietário da pensão,  Sr. Armed Mamed e sua esposa.  Também falei da boa localização, na rua da Instalação, que me permitia ir a pé para o trabalho e para todo o centro de Manaus, na época com agradável estrutura, inclusive de um forte comércio,  do popular ao requintado.  Nada justifica, disse-me  ele, “ eu estar morando em Manaus e tu numa pensão”.  Pedi-lhe um  tempo.  Dois dias depois ele voltou e me convenceu ao dizer “ vim te buscar agora e tenho a certeza que não farás desfeita ao teu irmão” . 

Assim, passei a morar com eles na av. Sete de Setembro, nas proximidades da Escola Técnica de Manaus.   Agora peço que leiam com especial atenção o que ocorreu.    Por volta de 19 horas do dia   8 de agosto de 1955,   o  Quitó me convidou para irmos ao bar  Pérola da Visconde, na Esquina de Av. Sete com a rua Visconde de Porto Alegre, onde havia um telefone público.   Era precaríssimo o sistema telefônico em Manaus.    Esperava-se minutos intermináveis para ter um sinal.  Ele insistia.  Quando em longa espera  a ligação acontecia, o telefone chamado estava sempre ocupado. Talvez o horário de muita demanda, pensou.    Voltamos às  20 horas, depois  às 21 e  às 22 horas,  e o problema se repetia.    A  Yolanda finalmente pediu,  quase implorando,  que ele desistisse desse telefonema pois já era muito tarde.  Ele disse que seria a última tentativa.   Finalmente, fomos por volta de 23 horas e ele conseguiu falar uns 15 minutos, justificando  que era ele quem deveria fazer aquele voo  de reconhecimento do traçado da estrada Manaus/Itacoatiara, pela qual tanto lutou,  e não o  Governador Plínio Ramos Coelho, foto abaixo,   que se mostrava irredutível até ser convencido em ceder o seu lugar.  Chegando em casa, satisfeito, avisou de sua viagem e a Yolanda lamentou lembrando que ele prometera, no dia seguinte,  almoçar com ela  em um restaurante.  “Não te preocupes, minha querida, essa viagem é de suma importância pra mim, está com hora de retorno rigorosamente cronometrada de forma que eu te prometo, chegarei a tempo de irmos a esse almoço”.



 Em Itacoatiara,  foi procurado por um  representante da Seguradora Equitativa,  que, de passagem pela cidade,  insistiu em viajar  em seu lugar naquele vôo de retorno.   Esse Senhor foi ao bar da praça da Matriz, ponto de encontro na cidade,  e falou horrores do Deputado, dizendo da falta consideração   de um homem público insensível, pois,  embora ouvisse detalhadamente os motivos de sua extrema necessidade de chegar em Manaus naquele dia, ele não cedeu seu lugar  nem  concordou em viajar na lancha que sairia logo em seguida, mesmo que lhe pagassem a passagem.  Esse Senhor,  gritou pra todo mundo ouvir, “ não merece representar seu povo”  e acrescentou,  em tom de galhofa: Vejam só a gracinha da alegação desse Deputado imbecil -- “ lamento mas não posso lhe ceder a vaga, assumi compromisso de almoçar com minha esposa”.  Enquanto desabafava sua raiva, um garoto chegou gritando, gente, eu vi, eu vi, um avião acabou de explodir no ar.  Foi aí que esse Senhor calou-se, ficou pálido e,  depois de alguns minutos com a cabeça sobre a mesa do bar,  brando voltou a falar :  “gente, agora só viajarei depois da missa de 7º. dia desse Deputado que salvou a minha vida”. Cumpriu a promessa,  e assim, duas vidas foram salvas.  Destino?

 Agradeço informações para melhoria deste texto: de  meu sobrinho Nelson Mendonça, do amigo Raimundo Gomes e do saudoso primo Antonildo  Mendonça.