sábado, 4 de junho de 2016

Adeus                      https://www.letras.mus.br/gilberto-alves/adeus/

 Adeus, tu vais partir
Deixando a noite em teu lugar,
E a minha voz vai colorir
O nosso adeus crepuscular.
Um lenço branco acenando
Querendo a dor sufocar.
Um sonho bom naufragando
Na branca espuma do mar.
E eu te direi num queixume
Que a felicidade
É sempre um vago perfume
No vesperal da saudade.

Esta música me trás uma bela recordação. Nunila, minha mãe adotiva,  levantou cedo dizendo que não mais iria ao passeio na fazenda,  para comemorar o seu aniversário.  Chorava muito e me disse, talvez dissimulando,  que era saudade de sua filha,  Jacyra,  falecida havia  6 anos.  Fiquei preocupado com a tristeza de minha mãe e ao mesmo tempo pensando no dia maravilhoso que eu já projetava em minha mente.  Passeio a cavalo, banho de rio, frutas e guloseimas à vontade, espaço imenso onde se brincava dando comida e espantando os  pássaros.  Por fim, Floro,  meu pai, possivelmente causador da contrariedade dela, se desmanchava em atenção e, com ajuda de minhas primas e tias convidadas, conseguiu que minha mãe não desistisse do passeio, também,  creio eu,  que ela  não quis estragar a viagem programada.  Meu pai mandou buscar a charrete,  que chamávamos na minha cidade, de “ carro de luxo “,  para levar as senhoras.  Os demais iriam a cavalo, inclusive eu,  na garupa do belo exemplar  que era conduzido pelo Washington, filho do caseiro.  Acampamos em um terreno, próximo da casa da fazenda. Não tive tempo ou interesse em saber quem cozinhava o que.  Sentia o cheiro convidativo de comida saborosa,  e corria com outras crianças, explorando o espaço com  brincadeiras repetidas de outros passeios ou inventadas na hora. Notei que, durante o dia, minha mãe, de vez em quando levava o lenço sobre os olhos,  disfarçando a tristeza. Mas, voltando ao assunto da música,  não sei por que ela  ficou gravada em minha memória  até hoje,  nos  meus 83 anos de idade, e que  repousa agradavelmente em meus sentimentos.  Teria sido a imagem que eu tinha, dos lindos momentos da partida dos navios, onde os lenços balançavam junto com as lágrimas dos que se ausentavam, enquanto, da terra, os movimentos se repetiam nos que ficavam?  Lembro como  os dois ou três apitos dos navios representavam sentimentos opostos, um soar grave de tristeza quando o navio se afastava lentamente na despedida e, com o mesmo cenário, esses apitos soavam exuberantes na alegria da chegada.  
Ainda me pergunto, teria  eu associado  à  música, os momentos em que a   alegria sofria lapsos de  tristeza que eu via,  nesse dia, no semblante de minha mãe?  Até hoje, quando vejo a beleza do mar, com ondas que se quebram em brancas espumas, essa música me aflora o  pensamento, como se fosse o tema musical de um belo filme, reprisado com  final feliz.   Curiosamente, por ser uma música romântica, é de se estranhar que uma criança de 8 anos de idade tenha se sensibilizado tanto por ela, a ponto de decorar letra e  música, esta  pouco divulgada em minha pequena cidade, Itacoatiara, no Amazonas, menos no nosso pic-nic, pois tocara repetidamente de dez  da manhã até o entardecer.  Resta-me finalmente,  agradecer por  essa repetição,  a quem esqueceu em casa  todos os demais discos. 

Minha infância

Sempre viajávamos entre Itacoatiara e Manaus. Vale recordar os navios “gaiolas” como o Moacir, o Barão de Cametá, o Jupiter  e tantos outros que subiam o rio Amazonas  de Belém até Manaus fazendo regatão, isto é,  vendendo  farinha de mesa e de trigo,açúcar,café,  manteiga, conservas em lata- sardinhas e corned-beef,   sal, cimento, sapatos,tecidos, sabonetes, perfumes,  muita cachaça e outras mercadorias às cidades intermediárias e aos comerciantes ribeirinhos. Retornavam descendo o rio comprando produtos regionais dentre eles pirarucu fresco e seco, couros salgados de boi e de jacarés, de onças pintadas ou  maracajás, de peixe-boi ou ariranha, borracha, balata, sorva, coquirana e lenhas para as caldeiras dos navios a vapor. Quando meu pai não conseguia camarotes nesses navios, viajávamos em  redes que roçavam  nas outras, na superlotação de  passageiros,  disputando espaço cumprindo regras não escritas e com respeito natural.  Em outras ocasiões, viajávamos em navios de cabotagem, os Loyds, Baependi, Campos Sales,Visconde de Mauá,um dos mais luxuosos que conheci,  que faziam viagens do Sul ao Norte, levando até Manaus passageiros e mercadorias diversas, retornando igualmente com produtos regionais mais madeiras em toras ou tábuas.  Numa dessas viagens a Manaus, aos 2 para 3 anos de idade,  eu estava sentado em uma cadeirinha à porta de casa na avenida Epaminondas, próximo ao 27 BC do Exército.   A menina-moça que zelava por mim entrara em casa por algum motivo, deixando-me sozinho,  justo no momento em que passava a procissão de N. S.da Conceição, a padroeira.  Quando ela voltou e viu a cadeira vazia, correu para avisar e participar do pânico em família.  Muitos correram em várias direções, retornando tristes sem me encontrar. Meu pai procurou um único rádio da cidade, mas não havia quem pudesse noticiar aos ouvintes, os poucos que tinham recursos para ter em casa  um rádio.  Membro da família e amigos se dividiam pelos quarteirões ao redor. Minha mãe,  caminhava sem rumo certo pelas ruas de Manaus, ao tempo em que rezava o terço confiante de que me encontraria. Andou uns três quarteirões em direção ao centro e uns quatro à direita,  se distanciando da igreja Matriz. Ao final de uma grande praça, a D. Pedro,  ficou em dúvida para qual rua seguir,  da direita, Bernardo Ramos,  ou da esquerda, ambas sem vi’valma  naquelas oito horas da noite de domingo.   Algo lhe sugeriu descer a rua da esquerda.  Seu instinto maternal a fez caminhar bastante em direção a uma casa com tênue iluminação saindo pela  janela. Parou em frente. Pôs-se a escutar umas moças que batiam palmas e riam muito alto.  Num minuto de silêncio bateu na porta. Uma das moças veio atende-la ainda sorrindo. As outras continuavam batendo palmas e rindo alto ao redor de uma mesa com uma criança ao centro. Minha mãe lançou-se para mim como uma gata,  sem pedir licença às pessoas que me rodeavam, gritando é  meu filho! As jovens pediram calma, explicaram que me encontram perdido na multidão, que não viram ninguém procurando por uma criança  que, solicitamente,  lhes deu a mão e as acompanhou. Todas solteiras, não tinham intenção de ficar comigo. Minhas protetoras  me tinham abarrotado com  leite, biscoito e banana, antes de eu começar a fazer gracinhas.  Meus filhos hoje dizem que eu sou meio vira-lata, por me adaptar em qualquer lugar... Acho que eles têm razão. Desde pequenininho.