terça-feira, 23 de agosto de 2011

Primeiros desafios na vida

Admitindo  que recém nascido pense, acho difícil que eu, aos 6 dias, entendesse a explosão do foguete junto à cama de minha mãe ou o burburinho que se criou em volta dela, tentando salvá-la.   Não lembro da fisionomia ou  do cheiro  das emprestadas mães-de-leite.  Elas, geralmente caboclas fortes e cheias de vida,  corpo suado e roupa nem sempre limpa,  mal lavavam o bico do seio,  isto quando  lavavam, mas amamentavam-me com leite de primeira qualidade, que, depois me disseram, eu degustava com voracidade, pena que  por pouco tempo.  Meu pai  recebeu em Manaus, até o falecimento de minha mãe,  o apoio de meu irmão mais velho, Gerson, que aos 18 anos iniciou carreira no exército.    A regressar a Itacoatiara,  cedeu-me  temporariamente, aquiescendo à ajuda oferecida,  para eu ficar na casa de meus futuros padrinhos,   José de Souza Aguiar e Guilhermina Negreiros Aguiar (Dona Guili) que  moravam em casa de dois andares,  de alvenaria, bem localizada, superior a de meu pai, tinham situação econômica muito boa, ambiente  familiar  calmo e acolhedor.   Mas nem tudo era belo, logo contarei.  Nesse entretempo, Floro Rebelo de Mendonça e  Nunila Barros de Mendonça,  comentaram em casa  o desejo de me adotar.  Sabendo das dificuldades existentes, foram  ao meu pai  manifestar o interesse em adotar-me como filho, prometendo respeitar a minha paternidade consangüínea, oferecendo  todos os  recursos de que dispunham, reforçando o pedido no desejo ardente de sua filha Jacyra, 6 anos de idade,  em me ter como irmãozinho.  Meu pai relutou muito,  porém, avaliou suas dificuldades, viúvo recente,  onze filhos a criar e um  ordenado pequeno  de auxiliar de escritório, levou em conta o insistente pedido de seu sobrinho e suas boas condições oferecidas, sua  idoneidade e o  carinho dos futuros adotantes. A muito custo,  cedeu mais à razão de que ao coração de um pai afetivo que era. Havia a  certeza de que os adotantes tinham condições de me dar o melhor acolhimento possível, como de fato aconteceu. Estabeleceu algumas condições e  todas foram cumpridas,  menos uma que só aos 12 anos  eu tomaria conhecimento.  É cedo pra falar disto.  Voltemos aos padrinhos.  Casal sem filhos, nada sabiam de como criar um recém nascido, confiaram-me  inteiramente aos cuidados de uma antiga empregada, cabocla  do interior do Amazonas, que tinha tido filhos, fazia muitos anos.  Ela, vendo minha indisposição para alimentar-me,  dava-me de comer, sem qualquer maldade mas por ignorância, leite Vigor (o condensado mais grosso e  gorduroso da época) envolvido em seu dedo que eu chupava como se fosse um peito sem furo.  Quando meus pais adotivos foram me buscar já se passavam dois meses. Minha nova mãe recebeu uma criança cadavérica, fedida, se esvaindo em vômitos, febre  e diarréia, e chorava muito ao me ver no limiar da morte.  Sem médico na cidade, tratavam de mim sem  conhecimento de  diagnóstico, fosse  de rota-virus,  gastro-enterite ou outros tipos de perturbação gástrica.    Ainda bem que minha mãe adotiva tinha conhecimentos de higiene e de remédios que me salvaram,  tanto farmacológicos como os  da flora do domínio de minha avó.  Era filha caçula do espanhol Aquilino Barros,   grande empreendedor e capitalista na minha querida cidade de Itacoatiara, e de Liberata Barros,  índia,  que foi por ele  raptada de uma maloca aos 14 anos, ou libertada,   no seu entendimento, tanto que a registrou  com o nome de Liberata.  Não me lembro do avô, falecido quando eu era pequenino,  mas aprendi muito ao conviver com a sabedoria  da inesquecível vovó Dadá, que chegou aos 102 anos, com saúde e lúcidez, e  que muitas vezes me acudiu com seus remédios de plantas que só ela conhecia.  Superei a morte, e a partir daí, fui de fato uma criança bem cuidada.  Minha mãe depositou todo seu amor em mim,  principalmente depois que minha intermediadora, a irmã Jacyra, filha muito querida,  levou uma queda  tendo como conseqüência  um hematoma sobre o peito,  febre alta e pneumonia, nos deixando aos 8 anos de idade  sem o recurso da penicilina, só  descoberta muito anos mais tarde.  Aos dois anos de idade, disseram-me que eu,  de vez em quando, furava o esquema de segurança e ia chamar a Jacyra no caixão -  o velório na época se fazia na sala de casa da família – cutucando com o dedinho os olhos dela, dizendo: “acorda logo Jacyra,  vem brincar”...Parece que eu começava a ser uma criança esperta, talvez danada, e que teve um futuro de grandes experiências, nem todas ao agrado de meus pais.  Veremos.

Lembranças Ternas: Nasci e as consequências

Sempre tive algum tipo de interesse por foguete.  Nem devia.  Eu era novato num  grupo de funcionários que me sacrificava sempre com as piores tarefas.  Um colega me advertiu: --poxa, mas tu já reclamas!  Logo respondi -- claro, quem leva fogo no rabo e sai assobiando é foguete.  O riso foi geral.  Lembro na minha infância, o quanto eu curtia em soltar a variedade de foguetes que meu pai me dava.  Desde os inocentes girassóis, que rodopiavam com luzes ao redor da varinha que eu segurava, aos busca-pés que corriam como se fossem lagartos fluorescentes, enloquecidos em zigzagues, fazendo a meninada correr em todas as direções.  Hoje ainda valorizo ver os fogos de artifícios, das noites de fim de ano em Copacabana, pintando o céu das mais variadas e lindas cores, caindo por terra em forma de raios, de pétalas, ou de gotas,  renovando-se em vários pontos da praia..  Por quê eu não devia, como disse inicialmente, gostar tanto de foguetes?  Contaram-me.  Nasci em junho, dia 23,  véspera de São João.  No dia 29,  as festas da minha pequena cidade de Itacoatiara, no Amazonas,  começavam com a procissão em embarcações lotadas, que disputavam os enfeites de coloridas bandeirinhas,   em um  passeio fluvial de subida e descida do rio,   em frente à cidade,  algumas apostando corrida sem nunca ultrapassar a lancha que conduzia a imagem  de São Pedro, dignificada com a benção sacerdotal.   Na pracinha,  ao lado do mercado e  em frente da casa de meus pais, seu Caetano, o fogueteiro,  tinha tradição em realizar a queima de fogos.   Com antecedência e muito trabalho arrumava cuidadosamente os  fogos que fabricava com muita pólvora, envolvida  em papel  grosso, fortemente amarrado com barbantes de forma a permitir impulso no lançamento, tendo como caudas umas varas finas que lhes davam direção. Com as pontas de  suas varetas enterradas, os fogos aguardavam o momento de receberem a queima do estopim.  A procissão está passando! gritavam os meninos que vinham correndo da beira do barranco, selecionados para avisar a passagem das lanchas.   Seu Caetano, com rapidez e muita  destreza, corria entre as fileiras atiçando fogo nas dezenas de  foguetes  para que subissem  sequenciados,  o  mais próximo uns dos outros, para,  no ar, realizarem   um  diálogo ensurdecedor  com os mais variados tipos de fogos que explodiam das embarcações.  A queima no céu se fazia estrondosa, as fumaças se misturavam com os inúmeros fragmentos de raios de  luz.   Muitas pessoas, principalmente crianças e idosos, se faziam presentes para satisfazer o medo, a ponto de se esconderem ou taparem os ouvidos. Os cachorros latiam desesperadamente.  Havia os que se deliciavam com esse espetáculo.   Menos minha mãe.  Deitada há 6 dias,  num pós parto que na época durava 40 dias de absoluto repouso, teve a súbita surpresa de um foguete  que desprestigiou a eficiência  do mestre-fogueteiro, e partiu como se fosse um busca-pé-do-alto, entrou pela janela e explodiu debaixo da cama dela.   O estouro da bomba tirou-lhe a tranquilidade do décimo primeiro  parto normal  de filhos vivos,  e  de 2 falecidos.  Saltou   bruscamente da cama e, com o pânico instalado, seu corpo todo tremia e  sua rubra face empalidecia  enquanto uma hemorragia se anunciava  descendo pela sua perna.  Depois  em falo das consequências.


As consequências

A festa de São Pedro era muito linda.  O baile das embarcações parecia musicado no ritmo das que  subiam  enquanto  outras   desciam o rio,  em movimentos-sorrisos.  As moitas de capins que corriam  rio abaixo,  surfavam  nas marolas provocadas pelas lanchas, em verdadeiras pranchas improvisadas pela natureza.  As embarcações menores  movimentavam-se para subir e descer de frente para as ondas dos tobogãs d’agua,  confiantes na  destreza de seus comandantes-práticos.  Visto das ribanceiras da cidade,  esse  belo espetáculo se fazia mais grandioso pela aproximação do Campos Sales, um dos belos navios de passageiro e carga do Loyd Brasileiro,  nosso  transatlântico da época que ligava  o Sul ao Norte do país.  Ao aportar lentamente em Itacoatiara, porto intermediário, acionara seus apitos fortes e sonoros,  quase lamentosos,  usuais para a atracação, porém, nesse dia,  mais repetidos em solidariedade ao espírito festivo da procissão de São Pedro.  A banda de música tocava junto ao coreto, no alto da pracinha de onde se descortinava  extensa área do rio.  A alegria era contagiante, o baile fluvial era majestoso aos olhos de  um povo que vivia numa cidade,  com cerca de 2.000 habitantes, de vida  simples,  tranqüila e acolhedora.  Enquanto isso, lá em casa,  chegavam de toda parte parentes, amigos  e curiosos, muitos deles bem intencionados, oferecendo seus préstimos e solidariedade.  Na casa modesta, de madeira e telhado de zinco, 3 quartos, sala, sala de jantar e cozinha,  a coreografia era outra.  Uns corriam pela direita, outros pela esquerda, alguns pelo centro, num ir e vir frenético mas harmonioso, em movimento cadenciado sob a direção do indomável caos.  Vasilhas com água, panos usados ou limpos, utensílios dos mais variados eram requisitados  com toda energia. --  Corre logo menino!  E o menino obedecia sem saber onde encontrar a tesoura pedida. --Trás a bacia com água morna, corre e vai buscar onde estiver o  Chico Ataíde, o  competente farmacêutico, difícil de ser encontrado no refúgio do feriado.  Os apelos dramáticos se cruzavam:-- trás folhas de alfazema, de aroeira, sucupira,bananeira, malva, beladona, camomila ,óleo de andiroba e copaiba, linhaça, urtiga,  alecrim,  juazeiro e tantos outros. -- Corre menino ! pensei que já estavas de volta! reclamava alguém de uma das lideranças que se improvisavam.  Sinceramente não sei se  nesse momento se lembravam de mim, ou, se nessa altura, aos 6 dias de idade,  estava eu  sugando e acariciando  o peito de alguma doadora amável e  generosa.  Passaram-se alguns anos para eu compreender porque minhas duas irmãs  em nada me ajudavam.  Para fazer justiça, ajudavam sim,  a chorar.    Tereza tinha  menos de 3 anos e Ermelinda  2.  Os outros 8 irmãos, todos homens,  agiam conforme o degrau da idade que ocupavam. Meu pai e os filhos mais velhos corriam pela cidade em busca de recurso.  A propósito, já ouviram falar de irrigador?  Não, não é o de planta.   Usavam geralmente uma vasilha esmaltada de até 2 litros, com uma saída d’água pelo fundo, ligada a uma mangueira de borracha tendo na extremidade um bico de ponta arredondada com vários furos, disposto a penetrações constrangedoras.  Fecharam a porta, poucos tinham permissão de acesso e minha mãe recebeu, desse irrigador, uma urgente lavagem do cozimento de várias folhas para estancar a hemorragia.   Meu pai chegou em seguida, acompanhado de um médico de bordo do Campos Sales.  Minha mãe, com insuportáveis dores, foi examinada e o médico recomendou que fosse levada urgentemente  para Manaus onde restava a esperança dos recursos hospitalares.  Transportá-la até a bordo foi um desafio.  Impedida de andar,  foi levada em  uma cadeira que  não pode subir pela estreita escada  que balançava na lateral do navio, retornando na catraia  apropriada  para suportar a corredeira do remanso ao fazer a ligação com a terra.  Consta que minha mãe tinha pouca altura mas era bem robusta.  Maria Vital de Lima era seu nome, porém, mais conhecida como Santinha, tratamento  carinhoso que recebia  por merecimento de quantos a conheciam.  Nem tudo estava perdido, em momentos como este uma boa idéia pode surgir.  Sentada numa confortável cadeira, foi içada para bordo por um dos guindastes de carga.  Em Manaus, ela foi hospitalizada na Beneficente Portuguesa.  Ali ficou por cerca de um mês.    Conquanto não tivesse apoio científico,  a lavagem não agravaria e,  quem sabe,  até poderia estancar a hemorragia.  Até hoje não sei qual foi a oficial causa-mortis, mas me contaram que os médicos não tinham dúvida de que   outro seria o  desfecho,  se  ela não tivesse sido vítima de uma ação precipitada, igual a  de quem,  em pânico,  usa  extintor inadequado  para apagar um incêndio.   A intenção da lavagem  foi louvável, era um dos  recursos utilizados na época, mas ela sofrera queimaduras irreversíveis   em suas entranhas, porque, lamentavelmente,   a água estava fervendo.     Lembranças ternas?   Nem sempre... Agora, considero que esse foguete, que tem data precisa,  29.06.1934, mudou o curso de minha vida... Veremos em seguida.